Ana Gomes disse, no último domingo, no seu espaço de comentário da SIC, que os membros do Governo “não podiam desconhecer” as condições precárias em que centenas de imigrantes vivem e trabalham no setor agrícola, no concelho de Odemira. A propósito do surto de Covid-19 entre aquela população, e que obrigou a soluções de recurso para garantir o isolamento daquelas pessoas, a ex-candidata presidencial garantiu que o caso “não é novo”, que “havia ‘n’ avisos” sobre a situação e que foram feitas “várias denúncias” e publicados diversos trabalhos na comunicação social, tornando impossível que o Governo não soubesse o que ali se passava. Verdade?

Mas Ana Gomes disse mais. No seu espaço habitual de comentário, na SIC Notícias, a ex-eurodeputada do PS disse que há legislação “que permite muitas das condições de insalubridade em que vivem os migrantes que trabalham nas estufas desta zona do país” e que congregava organismos de várias esferas do Governo. “Portanto, não podiam desconhecer” a situação, conclui.

Os dois argumentos — o de que o caso “não é novo” e o de que há legislação em vigor que permite a existência de contentores para albergar aqueles trabalhadores — estão ligados. Desde logo, através da resolução do Conselho de Ministros nº 179/2019. Publicado em Diário da República há cerca de um ano e meio, indica-se, logo no sumário, que aquele diploma “estabelece um regime especial e transitório aplicável ao Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM)”.

O documento sublinha a relevância daquele projeto hidroagrícola para a região alentejana. E, assinala que a existência de explorações agrícolas “tem atraído para a região uma quantidade crescente de trabalhadores”, com a consequente necessidade de reforçar a capacidade de resposta de serviços e infraestruturas públicas, além de equipamentos sociais. Mas, também, as necessidades de criar condições de habitação para aqueles trabalhadores agrícolas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A esse respeito, a resolução refere que “as necessidades de instalação destes trabalhadores, não podendo ser, a curto e médio prazo, totalmente colmatadas pela oferta de habitações existentes na região, conduziram à colocação de cerca de 270 alojamentos precários nas explorações agrícolas situadas dentro do AHM” — alojamentos que o Governo designa por IATA, ou Instalações de Alojamento Temporário Amovíveis, vulgo, contentores.

E reconhece que o facto de essas instalações “não possuírem, em muitos casos, dimensões adequadas, nem garantirem condições de higiene e conforto que permitam preservar a intimidade pessoal e a privacidade dos utilizadores”. Razão pela qual se “impõe a criação de um regime excecional e transitório que permita equiparar os alojamentos instalados no AHM a estruturas complementares da atividade agrícola, desde que cumpridas várias condições”. Essa equiparação podia — e pode — vigorar durante uma década. Mas, durante esse período, é “incentivada a busca de soluções que permitam a acomodação dos trabalhadores nos perímetros urbanos, como a celebração de contratos para planeamento entre as explorações agrícolas e os municípios”.

Por fim, essa mesma resolução criava um grupo de projeto com a “missão essencial” de “delinear um programa que permita, no espaço de 10 anos, assegurar a integral acomodação em perímetros urbanos dos trabalhadores agrícolas, pondo fim às instalações provisórias. O grupo seria presidido por um membro da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e tinha a obrigação de, “num prazo de seis meses”, elaborar um “programa de ação” que, entre outros pontos, define-se uma solução permanente de habitação para aqueles trabalhadores. O mesmo grupo teria de “proceder, a cada três anos, a uma avaliação socioambiental da situação e apresentar um relatório sobre o estado de operacionalização da presente resolução”.

Além de todos estes dados formais, e voltando à intervenção de Ana Gomes, o caso não era, de facto, “novo” para a opinião pública. E, em diversos momentos, foram divulgados na comunicação social reportagens que davam nota pública das condições de habitação em que os trabalhadores agrícolas de Odemira se encontravam.

No Alentejo, na fronteira da servidão

Apenas um exemplo: uma reportagem do Observador, publicada em 2014, em que um empresário agrícola diz que os seus empregados tailandeses “preferem viver mais apertadinhos”, porque estarão “habituados a viver em comunidade”. Sobre o recrutamento de trabalhadores para as suas explorações e a resistência dos portugueses para integrar a empresa, Telmo Rodrigues explica: “Não gosto quando começam a fazer muitas exigências salariais e de transporte. Quando acham que o salário é pouco…”.

Mas há outros exemplos. Como esta reportagem do Público, publicada logo após a aprovação da resolução do Conselho de Ministros, em 2019. Ou este artigo da revista Sábado, publicado quando os primeiros casos de Covid-19 foram registados na comunidade migrante da região, levando o presidente da Câmara Municipal de Odemira a falar numa “bomba-relógio” que acabara de detonar. Foi há um ano.

Conclusão

Portanto, e voltando à afirmação de Ana Gomes que serve de ponto de partida para este Fact Check: sim, é verdade que o Governo “não podia desconhecer” a situação que se vive na comunidade migrante que trabalha nas explorações agrícolas do Alentejo — seja pela legislação aprovada em Conselho de Ministros, há um ano e meio, e em que se reconhece a existência de falta de condições de habitação condignas para aqueles trabalhadores, seja, também, pelos vários artigos e reportagens publicados ao longo dos últimos anos.

Assim, segundo a escala de classificação do Observador, este conteúdo está:

CERTO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

VERDADEIRO: conteúdos que não contenham informações incorretas ou enganosas.

IFCN Badge