“’Falso’ curso de Direito da Ministra da Justiça!”, começam por apontar as várias publicações que começaram a circular no Facebook e no WhatsApp a meio desta semana. Num dos casos, a publicação atingiu em poucos dias as 633 partilhas e milhares de visualizações. As suspeitas decorrem do facto de Francisca Van Dunem ter entrado na Faculdade de Direito de Lisboa (FDL) em 1973 e de, na sua nota biográfica oficial, apresentar o ano de 1977 como momento da conclusão da licenciatura. “Ressalta destas datas a questão óbvia: mesmo com a bagunça das passagens administrativas em 75, deviam ser precisos cinco anos para fazer uma licenciatura mais o tempo de estágio”, continua o texto das publicações. Ora, currículo falso? Os documentos oficiais e o testemunho de quem dava aulas na FDL naqueles anos provam que não — e o próprio testemunho da ministra ajuda a contextualizar o que está em causa.
Em primeiro lugar, importa esclarecer que as datas referidas anteriormente estão corretas: acabada de chegar a Lisboa vinda de Angola, onde concluíra o liceu com uma média de 16 valores — ficando, por isso, dispensada do exame de admissão à Universidade —, Francisca Van Dunem entrou na FDL em 1973 e, de facto, terminou a licenciatura em 1977. Isso significa que, ao contrário do que seria habitual à época, completou aquele ciclo de estudos em quatro anos — e não em três, como sugere a publicação: começou no ano letivo de 1973/74 e seguiram-se os anos letivos de 74/75, 75/76 e, finalmente, 76/77. A duração normal do curso eram cinco anos letivos.
[ Pode ver aqui a certidão de conclusão de liceu de Francisca Van Dunem]
Ao Observador, o Ministério da Justiça admite essa cronologia. Francisca Van Dunem “iniciou o curso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1973 e terminou em 1977”, começa por referir o ministério. E, ao contrário do que aconteceu com alguns dos alunos da instituição contemporâneos de Van Dunem naqueles anos de convulsão política — o 25 de Abril dá-se em plena licenciatura —, a agora ministra “esteve inscrita como aluna da faculdade durante todo esse período”. Ou seja, durante aqueles quatro anos, não interrompeu os estudos. A título de exemplo, Maria José Morgado, também ela procuradora de carreira do Ministério Público (já aposentada) e antiga colega da agora ministra, suspendeu a licenciatura durante algum tempo para exercer atividade política, tendo chegado a estar presa nessa fase.
Outra questão é saber se, pelo facto de ter concluído a licenciatura em quatro anos — e não nos habituais cinco —, Francisca Van Dunem foi, de alguma forma, beneficiada e se isso significa que obteve uma licenciatura falsa, como sugerem as publicações que têm circulado nos últimos dias.
Ao Observador, o Ministério da Justiça explica que a ministra “completou a licenciatura em quatro anos” e que isso “era permitido pela legislação em vigor à época, com aprovação a todas as disciplinas do curriculum”. No caso de Van Dunem, a licenciatura foi concluída “fazendo umas disciplinas em regime de avaliação contínua e outras em regime “Método B” (não obrigatoriedade de frequência das aulas e apresentação a provas finais)”.
[Veja aqui o certificado de licenciatura de Francisca Van Dunem pela Faculdade de Direito de Lisboa]
José António Barreiros, advogado, era professor na Faculdade de Direito de Lisboa nessa época. Ao Observador, recorda a existência de um modelo de estudos misto, em que a avaliação contínua e a avaliação “por exame” eram conciliáveis, o que poderia permitir aos alunos acelerar o calendário normal da licenciatura e, até, como no caso de Van Dunem, encurtar o período total de estudos. A regra, recorda José António Barreiros, era que fosse respeitado o “princípio da precedência”. Isto é — e apenas para dar um exemplo —, que a avaliação à cadeira de Processo Penal não fosse concluída antes da avaliação a Código Penal. “Era possível apresentar-se a ‘método B’ a cadeiras de anos seguintes, permitindo encurtar o período de estudos”, explica o então professor da FDL.
Aliás, depois de terminar a licenciatura, e antes de iniciar a carreira no Ministério Público, Francisca Van Dunem foi monitora de cadeiras lecionadas por José António Barreiros. E o então professor universitário seguia o mesmo princípio estabelecido pela Universidade: “Eu nunca tive monitores que não fossem licenciados.”
Há ainda outro dado que a publicação verificada ignora: o contexto académico que se seguiu ao 25 de Abril. Van Dunem estava no primeiro ano da faculdade quando se dá a revolução — e isso teve consequência direta no funcionamento da própria faculdade (e de todo o ensino em Portugal, de resto). “Nesse ano, todos os estudantes da Faculdade de Direito e, muito provavelmente, de todas as faculdades do país foram abrangidos por passagens administrativas”, recorda o Ministério da Justiça, nos esclarecimentos prestados ao Observador. A então estudante Francisca Van Dunem não foi exceção e acabou por ser abrangida por aquela modalidade temporária de aprovação dos estudantes do ensino superior nos meses pós-25 de Abril — nos processos dos estudantes visados pelas passagens administrativas deixavam de constar, por exemplo, um valor numérico correspondente à classificação obtida nas avaliações curriculares.
O Ministério da Justiça ressalva, porém, que a agora ministra da Justiça “não beneficiou de qualquer vantagem, antes foi uma das muitas e muitos milhares de jovens que se adaptaram a uma mudança de sistema que atingiu em cheio todos os graus de ensino e, em particular, o ensino superior”. E destaca que “em abril [de 1974] se iniciara já o segundo semestre letivo, tendo havido até aí provas normais (testes de avaliação) em que obteve sempre resultados positivos”.
A própria reitoria da Universidade de Lisboa referiu-se, em 2013, a propósito de notícias sobre a licenciatura de Durão Barroso, à “situação política que se viveu em Portugal durante o ano de 1974 e que afetou, também, o funcionamento das instituições universitárias”. Uma situação que abrangeu centenas de alunos da instituição, que receberam as chamadas “passagens administrativas” em exames que se deveriam realizar no final desse ano letivo de 1973/74.
Esta ocorrência não significa que a licenciatura de Francisca Van Dunem seja “falsa” ou tenha sido obtida de forma irregular — e o mesmo se aplica a milhares de outros estudantes que frequentavam o ensino superior naquele ano. Isso explica que, depois de concluir esse ciclo de estudos, e depois de dois anos como monitora na FDL, Van Dunem tenha iniciado uma carreira de mais de 40 anos no Ministério Público, até assumir as funções de ministra da Justiça, em novembro de 2015.
Conclusão
Não é verdade que a ministra da Justiça tenha um “curriculum falso” pelo facto de ter concluído a licenciatura em Direito em quatro anos, em vez do habituais cinco. A acumulação de uma avaliação contínua com a avaliação por exames, aliada ao período em que Van Dunem se licenciou — e que teve implicações diretas na aplicação de passagens administrativas a algumas das cadeiras no curso, no verão de 1974 — explicam o período mais curto de estudos.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.