Num tom inflamado, uma mulher que é apresentada como “jurista” denuncia aquilo que, diz, “se tem passado diariamente nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”: uma “restrição à entrada do acompanhante do utente” que se dirige a uma unidade de saúde do serviço público. Prática que a mesma mulher diz ser “completamente ilegal”. Será mesmo?

No vídeo, alega-se que a recusa de acesso ao SNS por parte de um acompanhante viola dois diplomas legislativos: a Lei de Bases da Saúde, no seu artigo 2º, número 1, alínea h; e a lei 15/2014, nomeadamente no artigo 12º.

A ideia central do vídeo é esta:

Algo que se tem passado diariamente nos hospitais do SNS e que passa pela restrição à entrada do acompanhante do utente do SNS, nomeadamente nos serviços de urgência. Tal é completamente ilegal, viola a lei de bases da saúde, nomeadamente o artigo 2º, nº 1, alínea h) e viola também a lei 15/2014 no seu artigo 12º”, como defende a autora do vídeo

De facto, ambas as leis consagram esse direito, atribuindo-o aos utentes do SNS. Na Lei de Bases da Saúde (na Base 2 e não no artigo 2º) lê-se que “todas as pessoas têm direito a ser acompanhadas por familiar ou outra pessoa por si escolhida e a receber assistência religiosa e espiritual” quando se dirigem aos serviços de saúde. No outro caso mencionado (e que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde), o artigo 12º (“Direito ao acompanhamento) estabelece que, “nos serviços do SNS, é reconhecido e garantido a todos o direito de acompanhamento por uma pessoa por si indicada, devendo ser prestada essa informação na admissão do serviço”.

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Mas a questão não passa por apurar se esse direito está, ou não, consagrado na legislação . O que importa verificar é se a situação “que se tem passado diariamente nos hospitais do SNS” representa uma “completa ilegalidade” e viola das duas normas legislativas referidas pela protagonista do vídeo — ou seja, importa perceber se o direito de um utente do SNS a ser acompanhado é um valor absoluto, que não pode ser secundarizado face a outras necessidades, e se está aqui em causa um ato ilegal praticado pelos hospitais.

Ao Observador, o advogado Paulo Veiga e Moura explica que “uma coisa é a consagração do direito a ter um acompanhante quando o utente se dirige ao hospital e outra é coisa é os hospitais terem condições para receber os acompanhantes”. O artigo 14º da lei 15/2014 “mostra que não é um direito absoluto, depende das condições” dos serviços de saúde prestar os cuidados médicos sem que a qualidade dos mesmos seja afetada pela presença de acompanhantes. “Há atos em que o acompanhante não podem estar presentes para não comprometer os cuidados”, assinala o especialista em Direito Administrativo.

O vídeo em análise exemplifica com o acesso às urgências. Veiga e Moura considera que esse é um caso típico em que se impõem limitações. “Imagine-se que cada utente que entra numa urgência é acompanho de outra pessoa: esse é um local típico em que a presença de outros vai comprometer o atendimento dos doentes.”

Na mesma linha, o advogado João Gaspar Simões explica que “o direito ao acompanhamento no âmbito do SNS é restringido em homenagem à necessidade de assegurar as condições da prestação de cuidados de saúde em tempos de pandemia”. Há casos, sublinha Gaspar Simões, em que a salvaguarda desses direitos é reforçada — como quando os menores procuram cuidados de saúde e estão acompanhados.

Mas “a ideia de que existem direitos absolutos é descabida do ponto de vista do direito”, sustenta o advogado. Esses direitos “têm de ser interpretados sistematicamente” e, sublinha Gaspar Simões, ao contrário do que alega a jurista que protagoniza o vídeo viral, “não está a ser praticado qualquer ato ilegal” ao negar-se a presença de um acompanhante, se as regras estiverem claras e se essa informação for prestada aos utentes dos serviços de saúde. “Todos os direitos, incluindo os direitos, liberdades e garantias, têm campos de interpretação restritiva e são sujeitos a princípios de adequação”.

Um caso limite: o próprio direito à vida tem limitações se, por contraponto, estiver em causa um ato de legítima defesa. “Mesmo os direitos mais sagrados nunca são absolutos”, enquadra João Gaspar Simões.

Como também sugere Gaspar Simões, Veiga e Moura esclarece que poderia estar em causa um “ato ilegal” se um utente se dirigisse a um serviço de saúde, manifestasse a intenção de estar acompanhado e se não lhe fossem esclarecidos os motivos pelos quais não pode usufruir desse direito. “Mas partir daqui para dizer que se trata de um direito inviolável e que todos têm direito ao acompanhamento não tem qualquer sentido.”

Conclusão

O utente dos serviços de saúde tem direito, consagrado na lei, a ser acompanhado quando se dirige a uma instituição do SNS. Mas esse direito não é absoluto e inviolável — no limite, nenhum direito pode ser encarado dessa forma, como explicam dois advogados especialistas em Direito Administrativo ao Observador. Há limites que passam, por exemplo, pela necessidade de garantir que os cuidados de saúde prestados aos doentes não ficam comprometidos com a presença do acompanhante. E essa limitação nunca é ilegal.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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