Alguns versículos da Bíblia estão prestes a ser banidos das redes sociais? Uma série de publicações que circulam nas redes sociais garante que sim, indicando mesmo a lista de 11 trechos bíblicos que supostamente estarão prestes a deixar de poder ser citados nas redes sociais.
A tese, que não é verdadeira, parte da discussão do projeto de lei 2360/2020, conhecido no Brasil como a lei das fake news (formalmente, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), aprovada no Senado brasileiro e deixada em banho-maria na Câmara dos Deputados, sem data de aprovação à vista. Um diploma polémico, que é apresentado como uma medida para tentar limitar a propagação de notícias falsas, e que é muito contestado por apoiantes do ex-Presidente do Brasil Jair Bolsonaro — mas que em nada interfere com a liberdade religiosa.
Segundo a mensagem que anda a circular, a nova “censura” passará pelas próprias redes sociais, o que tem um fundo de verdade, uma vez que com este diploma as grandes empresas tecnológicas passarão a ter responsabilidade sobre o que é publicado ou incluído em anúncios pagos. Mas isso não tem diretamente a ver com conteúdos religiosos.
Numa pesquisa pelos versículos citados nesta publicação, verifica-se que têm a ver com temas como a obediência da mulher ao marido, os castigos que devem ser aplicados aos adúlteros e também aos homossexuais. Um dos trechos refere-se à homossexualidade como uma “perversão”.
O texto, que foi aprovado, numa primeira fase, no Senado brasileiro em junho de 2020, pode ser consultado aqui e prevê “normas, diretrizes e mecanismos de transparência para provedores de redes sociais e de serviços de mensagens privadas” para garantir “segurança e ampla a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento”. É aplicável a redes sociais e aplicações de mensagens com mais de dois milhões de utilizadores — os que tiverem menos, diz a lei, devem interpretá-la como um “parâmetro para aplicação de boas práticas” para o combate ao “comportamento inautêntico” ou à falta de transparência sobre os conteúdos pagos.
O projeto de lei determina que estas empresas devem adotar medidas para impedir o funcionamento de contas falsas e “bots”, assim como identificar todos os conteúdos publicitários como tal. Também se deixa claro que isto não implicará “restrição à manifestação artística, intelectual ou de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional ou literário, ou a qualquer outra forma de manifestação cultural”, ficando mesmo feita a referência ao artigo 5º da Constituição brasileira, onde se estabelece que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença (…)” e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica e política (…)”.
O texto do projeto prossegue dizendo que as empresas de redes sociais devem limitar o número de reencaminhamentos possíveis de mensagens ou controlar o número de contas que cada utilizador pode ter e estabelecendo regras para a moderação de conteúdos potencialmente ofensivos, incluindo “contra o Estado Democrático de Direito; atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo; crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; crimes contra crianças e adolescentes e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes; racismo; violência contra a mulher; e infração sanitária”, como resume a BBC Brasil.
São aqui consideradas “de interesse público, submetendo-se aos princípios da Administração Pública”, as contas de entidades e órgãos da Administração Pública e agentes políticos, devendo os políticos indicar, se tiverem mais de uma conta em seu nome, aquela que está associada ao cargo. E a Administração Pública não deverá aceitar publicidade em sites que promovam “incitação à violência contra pessoa ou grupo”.
Será ainda criado um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, com membros do Senado, da Câmara dos Deputados ou do Ministério Público, assim como representantes da comunicação social e de empresas tecnológicas. No projeto de lei ficam também estabelecidas as consequências para quem não cumprir a lei, incluindo multas no valor de 10% da faturação naquele ano no Brasil no caso destas empresas.
Como vários órgãos da imprensa brasileira noticiaram no início de maio, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, decidiu na altura adiar, sem nova data à vista, a votação do projeto já aprovado no Senado para evitar uma derrota do governo de Lula da Silva.
Os críticos da lei temem que os seus moldes levem a algum tipo de censura dos conteúdos na internet, além de haver questões sobre qual será o órgão responsável por fiscalizar o cumprimento da lei. Mas, através da sua leitura, fica claro que não há qualquer referência à censura de conteúdos religiosos, muito menos versículos específicos da Bíblia.
De resto, em maio, várias associações católicas — Signis Brasil – Associação Católica de Comunicação, Pastoral da Comunicação (Pascom Brasil), Grupo de Reflexão sobre Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), Observatório da Comunicação Religiosa (OCR) — vieram manifestar-se a favor do texto, defendendo que “não atenta contra a liberdade religiosa” e que isso são alegações “inverídicas” de “grupos extremistas para “propagar o medo”, “uma vez que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição Federal (artigo 5º, inciso VIII), e isso não será alterado. Afirmamos que a fé não deve ser usada como ferramenta de manipulação”, lê-se num comunicado citado pelo Vatican News.
Conclusão
Não há nada no texto aprovado no Senado brasileiro que mencione restrições ao conteúdo religioso que pode ser partilhado, muito menos a versículos da Bíblia. Pelo contrário: o projeto de lei estabelece que as novas regras não podem implicar uma “restrição à manifestação artística, intelectual ou de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional ou literário, ou a qualquer outra forma de manifestação cultural”.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.