Circula nas redes sociais uma imagem que alegadamente mostra um email enviado por Hillary Clinton a Barack Obama a propósito do “acordo da pizza”, uma conspiração conhecida entre os seus seguidores como “Pizzagate”. Na suposta mensagem, enviada por Hillary a 25 de janeiro de 2011, quando Obama ocupava o cargo de Presidente dos Estados Unidos da América, a então secretária de Estado queixava-se de que sempre pensou que seriam mais cuidadosos relativamente ao “acordo da pizza” e que trabalhar a partir da Casa Branca não era exatamente o que tinha em mente quando tudo começou. “Fica sabendo que falo enquanto tua amiga. És o Presidente e podes fazer como quiseres”, refere o suposto email, que fala em convidar os “carrocho-quentes” e que, além de Obama, tem como destinatários Huma Abedin, chefe de gabinete de Hillary, o ator Ben Affleck e Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes.

Na imagem, que parece tratar-se de uma fotografia tirada a um ecrã de computador, é possível ver a barra do WikiLeaks, que em 2016 divulgou cerca de dois mil emails da conta do diretor de campanha de Hillary Clinton, John Podesta. Ainda no mesmo ano, na sequência da polémica em torno da conta pessoal da própria Hillary, que a Secretária de Estado usava para tratar questões governamentais, o site disponibilizou no “Hillary Clinton Email Archive” mensagens que tinham sido recebidas e enviadas a partir desta caixa de email. Como é explicado na página principal do arquivo, os documentos dizem respeito ao período que vai desde 30 de junho de 2010 a 12 de agosto de 2014 e incluem 7.570 emails enviados por Hillary Clinton. Uma pesquisa realizada no site fundado por Julian Assange não permite, no entanto, encontrar o email em causa ou qualquer referência ao “acordo da pizza”.

O alegado email que está a ser divulgado nas redes sociais

O que é, então, o “Pizzagate” a que o post faz referência e porque é que Hillary Clinton e Barack Obama estarão envolvidos no caso?

A história do “Pizzagate” remonta a 2016 e ao momento em que a caixa de emails de John Podesta foi hackeada. Um dos emails que veio a público era dirigido a James Alefantis, dono de uma pizzaria em Washington D.C., a Comet Ping Pong. A mensagem destinava-se a discutir a eventual organização de uma ação de angariação de fundos para a campanha de Hillary no estabelecimento de Alefantis. De acordo com o The New York Times, James Alefantis, um artista natural de Washington D.C., tinha vários amigos no Partido Democrático e era apoiante de Hillary, embora não a conhecesse pessoalmente. O irmão de John Podesta, Tony Podesta, costumava frequentar o seu restaurante, inaugurado em 2006, e terá sido assim que o diretor de campanha se terá lembrado da Comet Ping Pong.

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Segundo a BBC, utilizadores do 4Chan começaram a especular em torno do email de Podesta e das eventuais ligações entre o Comet Ping Pong e o Partido Democrático, surgindo a teoria de que a pizzaria era a sede de uma rede de tráfico sexual de crianças dirigida por Hillary e o seu diretor de campanha. A teoria chegou eventualmente ao Reddit, onde um utilizador a partilhou quando faltavam alguns dias para as eleições presidenciais de 2016, na secção de extrema-direita do fórum, entretanto eliminada, juntamente com um alegado documento que provava a existência do “acordo da pizza”. A partir do Reddit, a história alastrou às redes sociais, onde utilizadores começaram a ameaçar a Comet Ping Pong e  o seu proprietário.

As ameaças virtuais depressa se tornaram físicas — James Alefantis e a sua equipa passaram a receber dezenas de chamadas por dia, ao mesmo tempo que o dono da pizzaria tentava junto do Twitter, Facebook e Reddit que as teorias sobre o “Pizzagate” fossem retiradas. “Somos constantemente ameaçados por causa desta teoria da conspiração louca e fabricada. Há dias que não faço mais nada a não ser tentar esclarecer isto e tentar proteger a minha equipa e os meus amigos de serem aterrorizados”, declarou Alefantis ao The New York Times. Mas a situação haveria ainda de piorar: cerca de duas semanas após a entrevista ao jornal norte-americano, Edgar Maddison, de 28 anos, entrou no Comet Ping Pong e apontou uma caçadeira a um empregado, que conseguiu fugir e chamar a polícia. Maddison, que foi detido 45 minutos depois sem ter provocado grandes estragos, disse às autoridades que tinha ido ao restaurante para “investigar” as acusações de tráfico de crianças.

Em 2020, as teorias associadas com o “Pizzagate” voltaram uma vez mais a inundar a internet. De acordo com o The New York Times, plataformas como a rede social TikTok permitiram a sua disseminação junto de um público mais jovem. Consequentemente, estas tornaram-se menos políticas e mais focadas em atingir celebridades norte-americanas, como a apresentadora Ellen DeGeneres (protagonista do seu próprio escândalo pessoal em 2020), a modelo Chrissy Teigen ou marcas como a Mayfair, alvo de uma teoria da conspiração divulgada em junho do ano passado através do Reddit que a acusava de ser responsável por traficar crianças que eram escondidas dentro de peças de mobiliário e vendidas online. A acusação foi negada pela empresa norte-americana à Reuters, que analisou o conteúdo das alegações.

Uma pesquisa realizada no Twitter permite encontrar vários tweets com a imagem do alegado email de Hillary Clinton publicados no verão do ano passado, dando conta de um aumento da sua partilha durante o período que se seguiu à acusação que visou a Mayfair.

https://twitter.com/Roadamite/status/1287219196485464064

A teoria de que altos quadros do Partido Democrata e algumas celebridades estariam envolvidos num esquema de tráfico sexual de menores de índole satânica voltou a dar que falar alguns meses depois, a propósito da invasão do Capitólio por apoiantes de Donald Trump. Entre os invasores contava-se Jake Angeli, o homem com um chapéu de pelo com cornos e cara pintada que, nas palavras da CNN, se tornou o símbolo do “espetáculo bizarro e assustador” que aconteceu em Washington D.C. durante a confirmação da eleição de Joe Biden nas presidenciais de 3 de novembro. Angeli é um conhecido apoiante da extrema-direita do Arizona com ligações ao grupo de teorias da conspiração QAnon, que assimilou muitos dos aspetos do “Pizzagate”. De acordo com os seguidores do QAnon, Trump estaria a trabalhar, a partir da Casa Branca, na queda dos pedófilos satânicos envolvidos na rede de tráfico sexual, que serão detidos em massa durante um evento chamado “The Storm” (“A Tempestade).

Apesar de o post que aqui reproduzimos ser datado de outubro do ano passado, a publicação continua a circular nas redes sociais. O USA Today analisou a mesma informação neste mês de janeiro, a propósito de uma publicação feita no dia 16.

Conclusão

Não existe no arquivo do WikiLeaks o email de Hillary Clinton para Barack Obama que está a ser partilhado nas redes sociais. Este trata-se de mais uma peça no complexo puzzle do “Pizzagate”, uma teoria da conspiração que surgiu após a divulgação dos emails do diretor de campanha de Hillary, John Podesta, em 2016, que defende a existência de uma rede de tráfico sexual de crianças envolvendo altos membros do Partido Republicano e celebridades com sede numa pizzaria em Washington D.C., a Comet Ping Pong, que pertence a um antigo apoiante da ex-candidata presidencial. Alguns dos aspetos da teoria “Pizzagate” foram assimilados posteriormente pelo QAnon, um grupo de teorias da conspiração que acredita que Donald Trump estaria a trabalhar para o desmantelamento da rede, que culminaria com a detenção em massa de todos os pedófilos satânicos envolvidos durante um evento chamado “The Storm” (“A Tempestade”).

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

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