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Criatividade longe do mar |
As férias de verão também abrangem os compositores que fizeram a história da música. Na verdade, muita da música mais bonita que há foi escrita precisamente quando os seus autores estavam de férias. Só que estas eram, geralmente, retiros campestres, sobretudo em zonas com lagos. Coincidência? Ou há algo de especial nos lagos? |
Sou português dos quatro costados, tenho de o admitir. O verão, para mim, é para estar perto do mar. Não sou capaz de ficar à torreira do sol muito tempo, mas não passo sem o mar. Só em 2019 é que experimentei abdicar do calor, do sol e da praia numas férias de verão rumo às Highlands escocesas. Jurei para nunca mais. Atenção: paisagens de cortar a respiração e natureza em estado puro. Mas também chuva, lama, frio, céus cinzentos e comida escocesa. Foi demais para a minha alma portuguesa, que passa nove meses por ano a suspirar pelos dias de praia, do peixe grelhado junto ao mar e o brinde ao pôr do sol que se esvai pela linha do oceano. |
Aquilo que me fez querer experimentar, por uma vez na vida, este tipo de destino para o mês de Agosto foi, precisamente, desejar sentir aquilo que sentiam os compositores de que tanto gosto. Procurar um pouco da mesma calma e tranquilidade na respiração profunda das montanhas. Fazer um trilho em vez de ficar deitado, experimentar o silêncio do bosque em vez do som das ondas do mar. E assim fui, para os muitos e fabulosos lagos escoceses, com ou sem castelos, com ou sem monstros e com mais ou menos turistas. |
Na minha cabeça estava, em primeiro lugar, a viagem que Felix Mendelssohn fizera no verão de 1829, quando andou precisamente por aquelas paragens, a cumprir uma versão alternativa do Grand Tour oitocentista: em vez de ir ao sul da Europa, foi ao norte. Ou melhor: por já ter ido ao sul, decidiu que era hora de ir ao norte. Porque Mendelssohn era um jovem da mais fina apanha alemã, com uma educação prodigiosa, poliglota, elegante e um verdadeiro dandy. Foi no entardecer do dia 30 de Julho desse ano que o então jovem compositor visitou as formidáveis ruínas de Holyrood e sentiu a epifania que haveria de transformar em música através da sua maravilhosa terceira sinfonia, intitulada precisamente Escocesa, e que se abre num ambiente de brumas musicais, evocando esse passado tão romântico e tão na moda então, muito graças a Walter Scott, e que por cá podemos ver replicado na ruína oitocentista a atirar ao medieval que se encontra na Quinta das Lágrimas — ou em todos os palácios neo-góticos que se proliferaram pela Serra de Sintra no século XIX. |
É que estar na praia, apanhar sol e torrar na toalha só foi ganhando fôlego enquanto forma de férias a partir do século XX. Mesmo Thomas Mann, ao descrever o seu janota Gustav von Aschenbach nas férias no Lido de Veneza, faz questão de referir o personagem sempre com um fato de três peças ou, quanto muito, um fato ligeiro de linho. Mas sempre com lenço no bolso, meias nos pés e sapatos bem engraxados. Era assim que os mitteleuropeus iam à praia nos anos 1910. |
E por falar em Thomas Mann, como evitar referir as míticas e ao mesmo tempo sumíticas cabanas para onde Gustav Mahler (alter-ego de Aschenbach, pelo menos a julgar pelo filme A Morte em Veneza, de Visconti) se retirava no verão e a partir das quais compôs música gloriosa, gigante e duradoura? |
É impressionante olhar para essas construções. Existem duas, uma colocada num local idílico em frente ao lago Attersee e uma outra junto ao lago Wörthersee, ambas na Áustria e as duas hoje em dia transformadas em memoriais, ou museus em miniatura. |
É claro que as quatro paredes, em si mesmas, são indiferentes. Porque a imensidão da paisagem inundava a mente do compositor, que dizia a quem o visitasse que não se preocupasse em apreciar esta paisagem, pois já a transpusera para música. E pensar que foi ali, entre aquelas quatro exíguas paredes, que o compositor arquitectou música tão gigante! |
Às tantas, quase se pode escolher um lago austríaco ao calhas e fazer a lista da música criada por compositores que estavam de férias na zona. O lago Wörthersee, por exemplo. Fica no sul da Áustria e, mesmo na sua margem, Mahler tinha uma lindíssima villa, desenhada pelo arquitecto Friedrich Theuer em 1901. Estes são os anos em que Mahler está no auge da sua carreira, no cargo de director musical da ópera da corte de Viena, e são também os anos em que sofre de burnouts profissionais e psicológicos, levando-o ao divã de Freud. No seu quotidiano, o compositor não tem tempo nem espaço mental para se dedicar à composição, e é só quando chega o verão que Mahler se retira para o lago e o até aí maestro passa a ser compositor. E nessa cabana, adjacente à sua villa, compôs as magníficas sinfonias nº4, nº5, nº6, nº7 e partes da oitava. Nada mal para o currículo deste lago. |
Mas trinta anos antes, também de férias por aqui, Johannes Brahms encontrou nestas águas tranquilas e nas paisagens verdejantes a inspiração para a sua segunda sinfonia, a mais bucólica, pacífica e serena das quatro que escreveu. |
De resto, Brahms também conheceu vários lagos europeus, tendo em 1886 alugado uma casa junto ao lago Thun, na Suíça, e saído dessas férias de verão com três magníficas novas composições nas mãos: a sonata para violoncelo em fá maior, a segunda sonata para violino e o trio com piano em dó menor. Três obras-primas com vista para o lago. Nada mal! |
É certo que tenho referido compositores da Europa central, nascidos e criados longe das praias e do sol que inunda o sul da Europa. É natural que estes preferissem a sombra fresca das árvores do que a brisa do mar. O mar era sinónimo de aventura, o lago de calma. O mar era para viajar, o lago para passear. O mar era inquietação, enquanto que o lago era quinta essência da quietude. No mar ficava-se doente, no lago recuperava-se saúde. |
E a verdade é que não só na Europa se vivia a cultura dos lagos. Também nos Estados Unidos da América, e já em pleno século XX, vamos encontrar Béla Bartók, gravemente doente de leucemia, em 1945, retirado junto ao lago Saranac, na zona norte do estado de Nova Iorque, a aproveitar os momentos finais da sua vida. Foi aqui, gravemente debilitado, que o compositor concebeu o concerto para viola e o terceiro concerto para piano, este último um presente de amor para Ditta Pasztóry-Bartók, sua mulher e parceira musical dos últimos vinte anos de vida. E este é um concerto de uma leveza e candura perfeitamente maravilhosos, que parecem transpor para a música a frescura de uma tarde de verão junto a um lago. |
Penso em tudo isto à medida que vou compilando playlists de música para ouvir na praia: música que nunca ouvi, outra à qual quero tirar o pó, e música que me acompanha todos os dias. Também vou de férias e aproveito a dádiva do tempo livre para me deixar inundar de boa música e alimentar a minha própria criatividade. |
Só não resisto pensar que o lugar onde estarei de férias, a ouvir esta música, possivelmente até debaixo do sol e deitado numa toalha, seria um lugar horrível para os compositores que escreveram a música que me irá encher os ouvidos. Se Mendelssohn, Brahms ou Mahler soubessem o que são para mim umas boas férias de verão, provavelmente iriam preferir ficar na cidade abafada durante os meses quentes do ano. |
Mas a beleza da vida também é isto, e como diz o ditado inglês, one man’s trash is another man’s treasure. |
Desejo a todos os meus leitores umas excelentes férias e aproveito para dar conta de que estas newsletters irão, por agora, ficar-se por aqui. Depois do verão irei dedicar-me outros projectos criativos e de escrita e não poderei combinar com a produção semanal destes textos. Agradeço ao Observador o convite que me foi feito há um ano e a todos os leitores que me seguiram e foram dando feedback. Foi um prazer estar deste lado! |
Agora, com a vossa licença, vou dar um mergulho. |
Até breve,
Martim |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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