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O calor que rima com arte e cultura |
Chegou o verão e, com ele, a oferta cultural estiva. Isto quer dizer que vêm aí as silly news e a oferta cultural fora de portas. Ou não fossem todos os festivais de verão (de quaisquer tipos de música) eventos que acontecem ao ar livre. É que, tirando os festivais, pouco acontece no verão. |
Em Fevereiro fui convidado — pelo Turismo do Algarve a — a reflectir sobre o cruzamento entre turismo e cultura, no âmbito da minha recente incumbência como maestro titular da orquestra da região. Passados alguns meses, e entrados na estação quente do verão, sinto-me tentado a aprofundar o assunto. Apesar da aparente ligeireza do tom com que descrevi culturalmente a silly season, a coisa é para ser levada bem a sério, porque no verão são evidentes as relações que a cultura e o turismo desenvolvem, e de que forma se ajudam mutuamente. |
Começo por um aviso à navegação: Do turismo e das suas indústrias, só sei aquilo que aprendi, de forma empírica, nos desafios que fui abraçando ao longo dos últimos anos. De cultura saberei um pouco mais, assim como da sua relação com públicos e territórios. |
A minha experiência e conhecimento nestas matérias foram acumuladas sobretudo nos quatro anos e meio de trabalho intenso com a Orquestra Sem Fronteiras no interior do país (só no mês passado tocámos em 19 aldeias do interior nacional e espanhol), assim como nos dois anos como director do programa cultural da candidatura de Aveiro a Capital Europeia da Cultura em 2027, nos meus primeiros seis meses de direcção musical da Orquestra do Algarve e na minha primeira edição como director artístico do Festival de Sintra, que acaba de acontecer. |
Detesto fazer name dropping. Não se trata disso. Só refiro estas experiências porque em cada um destes desafios encontrei um território específico, com o seu próprio mapa de organizações e agentes culturais, parcerias estabelecidas, sinergias locais, públicos e comunidades pré-estabelecidas. |
Cada local configura o seu próprio ecossistema. Basta pensar naquilo que são os desafios de uma orquestra residente no Algarve, que tem o dever de programar a sua oferta não só para os residentes nacionais mas também para os estrangeiros, a que se soma a quase duplicação sazonal de população durante o verão. A realidade de Sintra não é muito diferente, e em ambos os casos o fenómeno do turismo é incontornável. |
Bem diferente é, por exemplo, o contexto da aldeia da Bendada, no concelho do Sabugal, onde este mês farei dois concertos com a Orquestra Sem Fronteiras, no âmbito do Bendada Music Fest. Esta é uma aldeia que está adormecida a maior parte do ano, para ganhar fôlego durante a duração do festival, ocasião em que se vê rejuvenescida de visitantes e jovens (o ano passado, pouco depois da nossa passagem pelo festival, a região foi tristemente assolada por incêndios, obrigando à interrupção das actividades do festival, o que marcou um contraste negro com a festividade da música). |
Tenho feito a mim mesmo muitas perguntas sobre o que pode a oferta cultural fazer pelo seu território, quando é tão especial a relação com o turismo e com os benefícios que este pode trazer. E sobre estes dois ramos, cultura e turismo, gostaria de dar eco à defesa de que os dois podem representar uma aliança fortíssima. É evidente, e abundantes dados estatísticos comprovam-no, que uma relação saudável entre turismo e cultura pode ser imensamente benéfica, na medida em que aumenta significativamente os factores de competitividade e atractividade de qualquer destino, seja uma aldeia, uma cidade ou um país. |
A atracção de investimento e oferta de trabalho ou a captação de residentes comprova-o em cidades como Glasgow ou Barcelona, ambas tidas como referências internacionais para as melhores práticas de regeneração urbana através do impulso conjunto da cultura e do turismo.
Na verdade, ambos os campos encontram já um terreno comum, naquilo que é conhecido como o turismo cultural. E esse é um dos aspectos em mais rápido crescimento a nível internacional, podendo ser observado nos casos de Marvão, no Alto Alentejo, através do Festival Internacional de Música de Marvão (FIMM), ou de Óbidos, na região Oeste, através do Festival Literário Internacional de Óbidos (FOLIO). |
O FIMM acontece precisamente este mês, o que é uma escolha que se entende: é preciso tempo seco para realizar concertos ao ar livre e por essa razão o verão é o único momento em que uma orquestra pode tocar sob o céu estrelado com segurança. Já o FOLIO, escolha interessante, acontece este ano entre 12 e 22 de Outubro, o que também se compreende. Trata-se de um evento que envolve muita circulação a pé, o que não é agradável sob o sol inclemente do verão. Além disso, Óbidos já tem garantida a sua quota de turistas para o verão, pelo que o FOLIO pode permitir uma continuação do fluxo de visitantes pelo outono adentro, o que se compreende perfeitamente. |
Ambas as vilas eram, até antes da criação dos festivais (em 2014 e 2015, respectivamente), conhecidas quase exclusivamente pelo seu património material. Locais de emprego sazonal e com pouca caracterização a nível humano, repletos de casas devolutas e outros casos de incúria patrimonial estão impecavelmente reconstruídos e mantidos (Marvão nem sequer tem fios eléctricos à vista – foi tudo enterrado), onde há mais população, mais emprego, mais turismo, mais investimento e maiores receitas, para além de ambos se terem colocado no mapa de uma forma que outras pitorescas vilas dentro de muralhas nunca o fizeram. |
É claro que o fenómeno não se deve exclusivamente a estes festivais, mas seria difícil imaginar estes territórios a reinventar-se dum dia para o outro sem incentivos assim. A nível internacional, podemos comparar Marvão a Salzburgo e Óbidos a Paraty, para constatar o que acontece, a médio e longo prazo, a territórios secundarizados onde o turismo alavancou a cultura e vice-versa. |
São histórias de sucesso e em Portugal temos tudo para fazer crescer esta lista, como de resto tem sido tendência. Há cada vez mais localidades a renascer através da cultura, como temos visto ao longo das décadas nos casos de Paredes de Coura, Vila Nova de Cerveira, Vila do Conde, Idanha-a-Nova, Montemor-o-Novo, Cem Soldos, São Miguel ou até Évora, de quem se espera muito, visto que será Capital Europeia da Cultura em 2027. Todos estes locais estão já, inevitavelmente, associadas a manifestações culturais. E isso é excelente. |
Para que isso aconteça, as parcerias e sinergias são essenciais, sobretudo exigindo da administração pública local e nacional que sejam criadas as bases e os canais para o estabelecimento das mesmas. Vê-se que as coisas andam desencontradas quando a cultura se refere a públicos, numa óptica de audiência, e o turismo se refere a visitantes, numa óptica de clientela. Existem pontos em comum entre os dois ramos, e é daí que deve nascer qualquer mediação entre a cultura e o turismo. |
Aspectos como autenticidade, originalidade e participação são prioridades de ambos os sectores, e a ideia de comunidade deve ser central na tentativa de evitar um turismo descaracterizado ou uma oferta cultural irrelevante. |
Para isso é importante, uma vez mais, a abordagem ecossistémica: pensar um território com todos aqueles que o compõem, quer seja ao longo de um fim-de-semana ou durante uma vida inteira. |
Assim, quer os meus leitores sejam públicos ou visitantes ao longo deste verão, convido-vos a, perante a oferta cultural e/ou turística com que se irão deparar, reflectir sobre a possibilidade de uma coisa ajudar a outra. Porque é através de uma consciência colectiva que este tema se pode ir enraizando nas mentalidades e na agenda pública. |
[A fotografia é de Diana Tinoco e capta o concerto da Orquestra Sem Fronteiras no FIMM em Julho de 2022] |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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