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Amamentar não evita que o seu filho se torne um marginal |
Não há nada que me mexa mais com os nervos do que fundamentalismos. Sejam eles quais forem. Sempre que um tema começa a ficar com um carácter demasiado “obrigatório”, sempre que um caminho principia a parecer o único que é válido, ou o único que é certo, ou o único tout-court, há uma comichãozinha que se instala no meu nariz (não me perguntem porquê, mas tudo o que me irrita comunica diretamente com as minhas fossas nasais). |
Ora, nem é preciso ser mãe ou estar em vias de ser para se saber que o tema “amamentação” é vendido como o caminho da luz, o caminho do bem, o caminho das mães que vão para o céu por oposição às mães que optam pelo leite de fórmula (leite artificial) e que não passam de umas cabras egoístas, que obviamente não nasceram para a maternidade, e que se espera que morram no inferno das mães desnaturadas (e desnatadas, já agora). |
Estou naturalmente a exagerar (estou?), mas para muitas mulheres a coisa é mesmo posta desta forma, e das três uma: ou percebem onde está o equilíbrio e decidem em função dos vários fatores que se lhes hão-de colocar, sem dramas; ou seguem a ordem que lhes é dada, têm sorte e corre tudo bem (e talvez venham a ser elas as próximas fundamentalistas do pedaço); ou então corre tudo mal, a culpa vai esmagá-las, e vão acabar a dar biberões lavadas em lágrimas, e a sentirem-se um lixo. |
É este o perigo de tudo o que é extremado. Por muito que seja verdade que o leite materno é – em condições perfeitas – o melhor para um bebé, não é menos verdade que é preferível ter uma mãe com a cabeça equilibrada, do que uma mulher à beira de uma depressão, para quem amamentar é um suplício a que se sujeita tantas vezes por dia, só porque lhe meteram na cabeça que, de outro modo, o bebé vai ser altamente prejudicado. Menos, gente. Menos. |
É claro que depois há estudos que tramam isto tudo, como este feito no Brasil, que acompanhou de perto seis mil bebés, desde o parto até terem cerca de 30 anos, e que concluiu que os que haviam sido amamentados tinham um QI mais elevado e vidas mais bem sucedidas do que os alimentados a suplemento. E recomendações da Organização Mundial de Saúde. Oh, diabo. Querem ver que tenho de mudar o título e a entrada e o texto todo? Bom, para já, mal termine de escrever este texto vou aproveitar para perguntar à minha mãe quanto tempo mamei, afinal de contas. A vida não me corre mal, mas, calhando, mais uns meses de mama e sabe-se lá onde podia estar hoje. |
Brincadeiras à parte, e agora que apresentei o contraditório, continuo a crer que não há pior do que o fundamentalismo. Mesmo que possa aumentar o QI dos putos, se as mães ficarem chalupas no processo, é possível que o desfecho não seja brilhante. Talvez a inteligência e o sucesso não sejam tudo. Ou talvez esses tenham sido os casos em que correu tudo espetacularmente bem. Mas nem todos são assim. |
Há uns anos fiz uma reportagem que apresentava casos gritantes. Mães que amamentaram em condições arrepiantes, com mamilos em sangue, dores excruciantes, a morderem toalhas, só porque lhes era intolerável (tal foi a lavagem cerebral) não serem a única fonte de sustento dos seus filhos. Mães com depressões severas por não terem leite (como se isso, no conjunto de tudo o que vão ter de fazer ao longo da sua vida parental, fosse sequer um tema), mães a sentirem-se em défice, em falha, com culpa, como se não fossem mais do que um produto lácteo ao dispor. Sem rótulo, porém, rotuladas por uma sociedade implacável. |
Uma dessas mães, que entrevistei, contava-me que soube desde sempre que seria incapaz de amamentar. Para ela, aquela era uma zona exclusivamente erógena, que não queria, de todo, confundir com o seu filho. Até lhe parecia obsceno, só para que se entenda como, para algumas pessoas, as coisas podem não ser tão lineares assim. Quando o bebé nasceu, pediu o comprimido para secar o leite à enfermeira, e foi olhada como uma criminosa. Antes do comprimido, veio a enfermeira-chefe, tentar meter-lhe juízo na cabeça. Ela manteve-se firme na decisão, apesar de ter escutado comentários como “Dá Deus nozes a quem não tem dentes” ou “Sabe que está a privar o seu filho de algo que é muito benéfico para ele?”, fazendo-a sentir que começava a aventura da maternidade com o pé esquerdo. |
Se isto não é de doidos, então não sei. Porque, como em tudo, há casos e casos e, principalmente, não estamos a dar a escolher entre amamentar ou deixar uma criança morrer à fome (que é o caso em muitos países subdesenvolvidos). Estamos apenas a dar a possibilidade de alimentar um bebé com leite adaptado, sem dramas, a quem não consiga ou não queira amamentar, seja lá por que razão for. Claro que se pode tentar perceber as razões, tentar explicar os benefícios a quem não esteja ainda ciente deles. Mas, se ainda assim, a decisão se mantiver, era urgente que se aceitasse sem julgamentos. E sobretudo sem bocas foleiras, que só contribuem para uma culpa que não contribui seguramente para uma maternidade saudável. |
Quando tive o meu primeiro filho, correu tudo ao contrário do que tinha previsto. Tinha sonhado com um parto natural (dos fáceis, claro está), e acabei de braços abertos e amarrados, barriga aberta em c de cesariana, a ver o meu bebé por breves instantes e, depois, a ficar cinco longuíssimas horas longe dele, tudo porque cometi o crime de vomitar depois da anestesia. Nesse tempo em que o bebé esteve no berçário deram-lhe biberão com leite adaptado, o que acabou a revelar-se um desastre no nosso processo de conhecimento mútuo. De cada vez que tentava amamentar, ele não fazia ideia do que fazer com aquilo, eu transpirava, vinham as enfermeiras espremer a mama, a ver se ele percebia, ele berrava a plenos pulmões, e andámos nisto durante todo o tempo em que estivemos no hospital. |
Felizmente, antes de irmos para casa, aproximou-se de mim uma enfermeira enorme, chamada Capitolina, que me disse assim: “Vai chegar a casa, vai desligar o telefone, a campainha, vai despir-se, pôr-se à vontade e, quando ele tiver fome, vai tentar dar de mamar. Pega-lhe como quiser, de pernas para o ar até, que ninguém tem nada com isso. Tenta. Se ele não conseguir, dá suplemento. Na vez seguinte, tenta de novo. E faz isto umas três ou quatro vezes. Se não conseguir, desiste. Mas desiste tranquilamente. Sem qualquer culpa. Prefiro mil vezes uma mãe sã da cabeça e a dar biberões, do que uma mãe completamente descompensada, mas a amamentar. Ficou claro?” Claríssimo. Cristalino. Correu bem. O Manel mamou até aos seis meses, quando regressei ao trabalho, o Martim também (com duas mastites pelo meio). A Madalena e o Mateus mamaram até mais tarde, porque já era freelancer e pude estender a coisa até depois de um ano. |
Vamos lá ver uma coisa: amamentar é difícil. Pode não ser, para algumas afortunadas, mas não são assim tantas as que veem unicórnios e arco-íris enquanto alimentam as suas crias. Há as que sofrem porque têm dores. As que acham o momento uma seca sem fim. As que se angustiam porque não sabem quanto é que o bebé mamou e se será suficiente. Há as que acham sempre que não foi suficiente, sobretudo quando vem uma sogra (pobres sogras, sempre os bodes expiatórios) ou uma vizinha dizer: “O teu leite deve ser fraco, que o bebé está muito magrinho!”. E depois há as que ganham mastites com frequência, que ficam com febre e caroços no peito, as que têm leite a mais e que não dão vazão, a menos que comecem a vender para fora. |
A quantidade de dificuldades em redor deste tema é infinda. Não é por acaso que se fala tanto deste assunto. Ainda ontem, a Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa, em colaboração com a Faculdade de Nutrição da Universidade Fluminense do Brasil, comemorou a Semana Mundial do Aleitamento Materno 2022, com um encontro Portugal-Brasil, que contou com a participação da SOS Amamentação (Portugal) e o Grupo Mulheres Apoiando Mulheres na Amamentação (Brasil). O Objetivo do evento (que foi gravado e que podem ver aqui) foi, justamente, mobilizar ajuda voluntária entre pares, enquadrada técnica e cientificamente pela academia, por forma a assegurar que cada vez mais mães e famílias têm um apoio próximo e oportuno. |
Amamentar é um ato animal, mas nós – seres humanos – estamos cada vez mais esquecidos do animal que há em nós (isto agora soou estranho). E, no que diz respeito à amamentação, se lhe juntarmos a componente “obrigatória”, fica ainda mais difícil. Também não é por acaso que existe uma Associação Portuguesa dos Consultores de Lactação. É porque isto não é pera doce. Por isso, quem desiste tem de saber que não está só e que não é nenhum drama. |
Os bebés crescem na mesma, por vezes mais rijos do que bebés que são amamentados (o argumento de que os amamentados são mais saudáveis sempre me fez rir: o meu segundo filho foi internado aos dois meses com uma bronquiolite, e depois disso passou a vida no hospital com infeções respiratórias de repetição, apesar de mamar, em exclusivo e sem sequer se aproximar de suplementos, até aos seis meses). Não vão deixar de ser espertos, nem sociáveis, nem boas pessoas se beberem leite criado em laboratório. |
Para quem está agora a começar a aventura da maternidade, fica o alerta: este é apenas um dos muitos temas sobre os quais há mais especialistas por metro quadrado do que baratas em Lisboa. É sorrir e acenar. Em todos os casos, mesmo que sejam pessoas que saibam muito, nunca saberão exatamente como se sente a pessoa que aconselham. Simplesmente porque não estão, nunca estiveram, nem nunca estarão nas mesmíssimas coordenadas físicas, psicológicas e emocionais do que ela. |
Vale a pena… |
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Impressive Monet é uma reinterpretação das obras de arte de um dos impulsionadores do Impressionismo – o público será imerso pelo movimento do artista e envolto pelas linhas e cores do mundo de Monet. Brilliant Klimt traça o percurso biográfico e artístico do artista, a partir da sua pintura icónica, O Beijo. |
Assistir à peça O Diário de Anne Frank, no Teatro da Trindade, em Lisboa |
Imaginem-se escondidos num sótão. Imóveis. Silenciosos. Durante dois anos. Privados da vossa liberdade porque lá fora reina a morte. Anne Frank tinha apenas 13 anos quando foi lançada a este cruel desafio, juntamente com os pais, irmã, um casal amigo com um filho e um homem. Destas oito pessoas, sobreviveu apenas uma, Otto Frank, pai de Anne, que mais tarde decidiu dar a conhecer ao mundo o diário da sua filha, morta num campo de concentração com apenas 15 anos. Se tiver uma criança pequena, não será recomendável, mas um pré-adolescente mais madurinho estará em boa altura de conhecer a peça, sobretudo se já tiver lido o livro.
Teatro da Trindade INATEL
Rua Nova da Trindade, 9, Lisboa
Tel.: 213 423 200
teatro.trindade@inatel.pt |
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O livro Escanifoquê?, de André Letria e Ricardo Henriques, serve de pretexto para esta visita ao Oceanário de Lisboa, que envolve ovos e bicadas, dentes de tubarão e conta com a participação especial da mascote Vasco. É necessário agendar a visita com três dias de antecedência por telefone (218917000) ou por email (reservas@oceanario.pt). |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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