Dar um berro e um murro (na mesa) não faz de nós maus pais |
Ponto prévio: este texto é sobre parentalidade positiva e há muito neste tema que me irrita. Ainda assim, creio que não seja o ponto de partida o que me mexe com os nervos, mas mais o ponto de chegada – e esta newsletter pode servir também para ir refletindo nisto à medida que escrevo e, quiçá, chegar a uma conclusão. |
Vamos lá ver: parece-me lindamente que exista quem se dedique a estudar os efeitos de uma parentalidade sem berros e tendo como pilar a via construtiva e positiva, e quem tenha como missão (ou modo de vida) ensinar os novos pais (ou não tão novos assim, basta que estejam disponíveis) a porem estas ideias em prática. A verdade é que, não há tanto tempo assim, ninguém tinha cá paninhos quentes para com as crianças. Havia gritos, havia frases que hoje são consideradas tóxicas, havia humilhação, havia – até – agressão física. Quando a minha mãe era pequena, não só levava dos pais como era perfeitamente admissível (e até desejável) apanhar da professora, caso “merecesse”. |
Nas entrevistas que tenho feito a pessoas com a idade da minha mãe ou dez ou vinte anos mais velhas do que ela, há poucos relatos de afeto parental e muitos testemunhos de pancada da grossa oferecida generosamente por parte de família, de professores (a famosa “cinco olhos”, uma régua com 5 buracos que ficavam marcados nas mãos) e de patrões irados. Mas não é sequer preciso recuar ao tempo da minha mãe. Eu apanhei, e não foi pouco (a minha mãe interromperia agora este momento para dizer que talvez não tenha sido o suficiente), o meu marido também levou as suas palmadas (ele também interromperia agora para dizer que foram poucas vezes, porque sempre foi extraordinário), e a esmagadora maioria dos meus amigos também soube o que era ter o rabo aquecido, fosse por uma mão, uma colher de pau ou um chinelo. |
Porém, as nossas professoras já não nos bateram (curiosamente, a minha irmã, mais nova do que eu 11 anos, ainda levou da professora, mas vivia no interior do país, onde a evolução demora sempre um pouco mais a chegar). Ainda assim, nota-se uma enorme diferença de há sessenta anos até ao presente. Hoje, consideramos uma barbárie que um professor bata nas mãozinhas pequenas de uma criança com uma régua de madeira (ou que lhe toque com um dedo, sequer). E ainda bem. |
Falamos de um tempo em que as pessoas não sabiam absolutamente nada sobre crianças, sobre o seu desenvolvimento emocional, sobre o facto de que aquilo que é dito e feito ter consequências (de maior ou menor gravidade, consoante o contexto e a personalidade de cada um). Falamos de um tempo em que as pessoas, na sua maioria, estavam muito mais preocupadas em simplesmente sobreviver e não deixar morrer os seus 15 filhos, nascidos uns atrás dos outros, do que a questionar a melhor forma de os convencer a despacharem-se, sem lhes deixar traumas irreparáveis provocados por uma eventual rispidez no tom de voz. |
É óbvio que tenho de concordar com a evolução a que temos assistido, e com esta crescente preocupação com o bem-estar emocional das crianças. E tenho a certeza de que o movimento da parentalidade positiva contribuiu – e muito – para nos abrir os olhos sobre melhores formas de cuidar dos nossos filhos. Isso e a redução do número de filhos, e as melhorias da qualidade de vida, sem as quais o passo rumo a novas preocupações que não se cingissem à sobrevivência pura e dura, nunca teriam sido dados. |
Mas – e ele tinha de vir, o “mas” – às vezes parece-me que estas pessoas que ensinam os pais a serem melhores pais não são verdadeiras pessoas. Pessoas de carne e osso, que acordam com uma dor de cabeça que dura o dia inteiro, ou uma neura pesada e escura como uma nuvem cinzenta que teima em sair do céu. Pessoas com dias em que o trabalho correu pessimamente, semanas em que foi tudo ruim, dinheiro contado, carro na oficina, transportes para ir e para voltar, horas perdidas no trânsito, roupa para passar a ferro, comida para deixar preparada, lavar e estender roupa para descobrir, a meio do dia, que começou a chover. Reuniões de condomínio, uma carta inesperada das Finanças, uma insónia ou várias, um mindinho do pé partido de encontro a uma cómoda. Sempre que os oiço falar, aos “positivos”, na sua serenidade imperturbável, tenho uma secreta vontade de lhes segredar ao ouvido: “Conta lá, anda: o que é que tu fumas, que eu também gostava de experimentar?” |
Quando estas “pessoas de luz” falam de uma birra épica de um filho, e do modo como os pais devem encarar esse momento como uma “oportunidade”, quando falam em negociação com os filhos como se estivessem a falar de negociação com um grupo armado que fez reféns numa escola, tudo cheio de cuidados e pruridos, encho-me de comichões e tiques e principia a crescer em mim uma impaciência inversamente proporcional à tranquilidade que eles teimam em esfregar-me na cara. |
Quem é esta gente? Que nunca grita? Que nunca se descontrola? Que acha tudo maravilhoso, mesmo que seja o sofá novo riscado (que lindo, criança a ser criança, e escolhendo aquela tela em branco para se exprimir)? Que não se passa dos carretos quando um puto bate com a porta, ou se recusa a fazer algo que se lhes mandou fazer (“pediu”, desculpem, não se manda fazer, pede-se). Que nunca diz “fazes porque eu estou a mandar e acabou!”? |
No outro dia, o meu marido estava numa sala de espera e uma criança estava a fazer uma birra daquelas de fazer eriçar os pelos do pescoço. O pai mostrava-se sereno, querido, ajoelhado junto à criança, a tentar acalmá-la. O meu marido estava a achar a cena ternurenta, apesar de já ter os ouvidos em sangue com a gritaria do miúdo. Entretanto, o meu marido dirigiu-se para a saída e percebeu que pai e filho vinham atrás. Por cordialidade, segurou na porta. O pai não percebeu e continuou a conversar com o filho, procurando convencê-lo a sair dali. A criancinha guinchava e batia os pés e ele mantinha o tom baixo, a paciência, a doçura. O meu marido, entretanto, continuava a segurar a porta. Quando, finalmente, o pai se deu conta de que alguém estava a agarrar na porta para ele e o filho passarem, disse: “Ah, estava à nossa espera? Oh, muito obrigado. Mas a negociação ainda agora começou!” O meu marido chegou a casa abesbílico, e cheio de pena de não ter perguntado àquele santo homem que substância o deixava naquele estado zen. Eu também fiquei com pena por essa oportunidade perdida. |
É por estas e por (muitas) outras que digo que não é propriamente o ponto de partida o que me irrita na parentalidade positiva, mas sim o ponto de chegada. Ou seja: a intenção é boa, alguns especialistas passam uma mensagem importante (outros nem tanto), mas muitos dos pais interpretam a coisa de uma forma muito particular, e a parentalidade positiva tende a resvalar de forma vertiginosa para uma parentalidade permissiva que me parece tão perniciosa como a antiga parentalidade opressiva. |
Passámos do “o menino não tem quereres” (resposta dada amiudadas vezes sempre que um miúdo mais ousado dizia “eu quero”), para “ó menino, basta quereres”. E porquê? Porque se criou nos pais esta ideia de que tudo tem de ser conversado, tudo tem de ser negociado, explicado, não imposto, não forçado. Tudo é suscetível de ser traumático, de criar feridas insaráveis na personalidade frágil das crianças, e os pais vêem-se encurralados numa positividade tóxica, que desemboca numa falta de educação gritante (e este gritante não é só metafórico, uma vez que muita da falta de educação passa também por gritaria sem qualquer controlo parental). |
Há tempos, conversava com uma amiga sobre um dos mestres da parentalidade positiva, o brasileiro Marcos Piangers. Eu a dizer-lhe que gostava mesmo dele, ela a responder-me que não o suportava. Eu a achar que ele era genuinamente fofinho e que as coisas que ele dizia eram bonitas e carregadas de sentido, ainda que eu nem sempre as conseguisse pôr em prática, ela a dizer que ele devia era malhar com os ossos na casa dela, com os filhos dela, com a vida da treta que ela tem, para ver se continuava tão maravilhado com a parentalidade. Percebo-a. Era como dizia, ali atrás: às vezes esta malta descreve as coisas sem mácula, como se tudo fossem purpurinas e unicórnios, e uma pessoa, no dia-a-dia esmagador, só consegue pensar: “onde? Onde é que estão as purpurinas e os unicórnios, santo Deus?” |
O que concluo, no final de tudo isto, é que este movimento foi, é e continuará a ser importante, mesmo que por vezes seja extremista (e irritante). Em todas as revoluções de paradigma, houve excessos, houve radicalismos, houve exageros. A ideia é rasgar com o que existe, exultando o outro extremo, para depois acabar por se encontrar um equilíbrio, algures entre um lado e o outro. Queimaram-se soutiens, nos anos 60, pelo feminismo, e hoje muitas conquistas já foram feitas (embora haja ainda muito por fazer), mas já não precisamos revoltar-nos contra a roupa interior. |
Sou por esse equilíbrio. Gosto de ter o Piangers na minha cabeça (tipo Grilo Falante) quando perco a paciência com um filho, porque me ajuda a recuperar o controlo, e a procurar não dizer o que me disseram a mim, e a não perpetuar comportamentos nocivos. Mas também sinto que perder a paciência de vez em quando é aquilo que faz de nós humanos, gente com sangue a correr nas veias, e com vidas que nem sempre são um mar-chão e tépido, onde boiamos felizes, com peixinhos coloridos em redor. |
Menos, malta. Há dias maus, há crianças e adolescentes desafiantes, e dar um murro na mesa (na mesa, malta, na mesa!) não vai traumatizar ninguém, ou destruir-lhe a vida, ou fazer de nós péssimos pais. Somos gente, não somos santos. Temos temperamento, mau feitio, dias para esquecer. Se formos injustos, podemos pedir desculpa, e tentarmos ser melhores, para a próxima. Mas, por favor, que a parentalidade positiva não se transforme em mais uma culpa no nosso cartório, que já é pesado demais. |
Vale a pena… |
Ler o livro Uma História Musical – As Quatro Estações num Dia
Escrito por Jessica Courtney-Tickle, é tão lindo, mas tão lindo, que é uma obra de arte em formato de livro. A história não é genial, mas tudo o resto é: a Isabel e o seu cachorrinho, Pepino, vão percorrer as quatro estações do ano num só dia, e viver aventuras correspondentes a cada estação. Mas o que o livro tem de extraordinário são as ilustrações (belíssimas) e o facto de, em todas as folhas haver um “Pressiona Aqui”, onde se toca e se escuta uma das peças de Vivaldi: Primavera, movimento I, II e III; Verão, movimento I, III; Outono, movimento I, III; Inverno, movimento I, II. E todas as músicas se ligam à história e às ilustrações, conferindo-lhes, tal como nos filmes, dramatismo, agitação, calma ou felicidade. Uma pequena maravilha, que entrou diretamente para os preferidos cá de casa.
(ed. Jacarandá) |
Ver o filme Os Fabelmans, de Steven Spielberg
O meu marido convidou-me para irmos ao cinema, convocou os mais velhos para tomarem conta dos mais novos, e lá fomos, meio sem saber o que ver. Entretanto, vi uma sugestão no Instagram, e decidi apostar nesse. E ainda bem. Os Fabelmans ganharam, nessa mesma noite, os Globos de Ouro para Melhor Filme e Melhor Realização. É um filme autobiográfico (descreve os primeiros vinte anos do próprio Spielberg) e é sobre cinema mas também sobre amor, família, traição, divórcio, e amor mantido apesar do divórcio. É um filme sobre sonho, sobre vocação, sobre sobrevivência. Uma delícia, mesmo. Saí da sala assim com aquele sorriso besta de quem acabou de receber um bombom sem estar à espera. |
Ver o filme O Filho, de Florian Zeller
Não vi, mas vi o trailer e também o filme anterior da mesma trilogia, O Pai (2020). Se com esse primeiro chorei como uma Madalena, nem quero imaginar o que será com este O Filho, que já me fez engolir em seco logo ali no trailer. Pareceu-me uma trama angustiante sobre uma família em queda livre, sobretudo um adolescente, a tentar encontrar o seu lugar no mundo, e a aflição dos pais a tentarem não o perder. Este é daqueles que tenho mesmo de ver, mas sem esquecer o pacote de lenços e os óculos escuros para sair da sala com a dignidade imaculada. Não é que haja alguma vergonha em chorar no cinema (ou em qualquer sítio). O problema é que eu choro mesmo muito. |
Ver a peça A Quinta dos Animais, no Teatro Bocage, em Lisboa
Está em cena hoje, sábado, dia 14, e no próximo sábado, dia 21, às 16h00. Inspirada na obra de George Orwell, a peça mostra que os animais começam por colaborar todos, mas rapidamente se percebe que há diferenças que trazem consigo reviravoltas inesperadas. Talvez os miúdos não tirem as ilações sociais todas que Orwell nos levou a tirar do livro que se tornou um clássico incontornável da literatura, mas já se sabe que é de pequenino que se torce o pepino, o mesmo é dizer que há sempre coisas que se aprendem. Se for a rir, então, melhor ainda.
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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