Quando uma empregada doméstica se torna um membro da família |
Esta é a minha última newsletter sobre temas de família, aqui no Observador, e gostava de a dedicar a uma pessoa que, não sendo da família, é como se fosse, pela importância que teve na nossa vida, ao longo de 17 anos. Chama-se Emília e começou a trabalhar na nossa casa quando o nosso primeiro filho, Manel, tinha três anos, e eu estava grávida do Martim. |
Tínhamos começado a vida a dois sem empregada doméstica. Acho que eu andava entretida a brincar às casinhas, e achava tudo encantador: limpar, aspirar, fazer refeições, lavar a loiça, passar a ferro. O Ricardo sempre dividiu comigo as tarefas domésticas (nada de “ajudar” em casa, mas sim partilhar tudo o que houvesse para fazer) e nem me passava pela cabeça ter empregada. |
Lembro-me, até, da certa ofensa que sentia quando a minha sogra enviava, semanalmente, sacos de comida feita e por fazer. “Será que ela acha que te mato à fome?”, perguntava eu ao filho, com um certo enxoframento na voz. Reparem no pressuposto machista do meu próprio pensamento: eu sentia que estava a ser posta em causa a minha competência doméstica, como se eu tivesse de ter uma competência doméstica, agora que me tinha casado. Por acaso, agora que falamos nisso, tantos anos volvidos, ela tinha todas as razões e mais algumas para a pôr em causa – se há coisa que nunca fui foi uma boa “dona-de-casa”, e nessa altura, então, pior ainda. A diferença é que sentia alguma culpa por essa “falha” formativa, e hoje estou-me um bocado mais nas tintas — se bem que reconheça que gostava de ter, pelo menos, uma costela de fada-do-lar. |
Uns tempos depois do encantamento, provavelmente quando o primeiro filho nasceu e as tarefas começaram a ser maiores do que a alegria da domesticidade, contratámos uma engomadoria que ia a casa buscar a roupa engelhada e a devolvia irrepreensivelmente lisa. E, quando a minha segunda barriga já mal me permitia ver os meu próprios pés, demos então o passo de “arranjar alguém que nos ajudasse”. Perguntei no café mesmo em frente à nossa casa se sabiam de alguém que andasse à procura de trabalho, falaram-nos na dona Emília, escreveram o nome dela e um número num papel, a lápis. E assim, em finais de 2004, começou a nossa viagem. |
A dona Emília começou por trabalhar apenas alguns dias por semana, acho eu. Nunca lhe fiz listas de tarefas, nunca “mandei” porque na verdade não sei mandar. Sempre ouvi dizer uma frase que só entendi agora, quase a chegar aos 50 anos: “Para saber mandar é preciso saber fazer”. Ora, eu não sabia fazer. Quando era criança, era a minha avó que fazia. A minha mãe trabalhava até tarde, chegava a casa, jantava, e continuava a trabalhar pela noite dentro, em traduções de alemão que tinham prazo apertado de entrega. Era a minha avó que tratava do resto, mas, no processo, ninguém se lembrou de me ensinar a limpar, a arrumar, a lavar. Nada. Cresci arredada das lides de casa, como se elas se realizassem sozinhas. |
Quando a minha avó morreu, tinha eu uns 15 anos, dois amigos preocuparam-se. “Como é que aquela desgraçada vai fazer agora?”, devem eles ter pensado (e com razão). Juntaram-se, tipo missão, e vieram a minha casa porque acharam que eu ia afundar-me em imundície. Sabiam que eu não sabia fazer e, ainda por cima, estava de luto. Vieram, limparam, esfregaram, ensinaram como se fazia. Não me esqueço do gesto, até hoje. |
Depois disso, creio que a minha mãe terá tentado ensinar-me. Lembro-me vagamente de limpar, sem convicção, de ajudar, sem esmero, de empurrar roupas para dentro do armário, em vez de as ordenar em cabides. De vez em quando, a minha mãe abria o roupeiro e havia uma avalanche de roupas que escorregava para cima dela. Cresci sem hábitos de ser arrumada e organizada. Não é culpa de ninguém. Foi a vida, que aconteceu assim. A minha mãe estava demasiado ocupada a trabalhar para nos sustentar, sozinha, e a minha avó era uma avó de colo e bolos, que fazia tudo e achava que a mim me competia, apenas, estudar e brincar. |
E a história acabou por se repetir, com a chegada da dona Emília à nossa vida. Com uma “patroa” que não sabia fazer, ela tomou as rédeas da casa. E fez. E fez bem. Primeiro só umas horas por semana, depois todas as tardes de todos os dias da semana. Sempre decidindo o que fazer, em que dias, em que moldes. Por mim, impecável assim. |
A “nossa” Emília esteve connosco sempre: primeiro no Príncipe Real, onde vivíamos na mesma rua (ela só tinha de percorrer uns metros a pé, entre a sua casa e a nossa), depois, quando mudámos para o Parque das Nações, fizemos apostas de quanto tempo se aguentaria, a apanhar não sei quantos transportes para chegar à nossa nova morada. Três meses, disse um, seis meses, atirou o outro. Ela ficou até julho de 2021, num total de 17 anos, em que começou por trabalhar numa casa no centro de Lisboa, onde havia uma criança, e acabou na zona oriental da cidade, a acompanhar o crescimento de quatro crianças, um cão, e depois outro cão, numa loucura crescente. Ela nunca se acobardou. Nem desistiu (e sabe Deus, quantas vezes terá pensado nisso). |
A dona Emília nem sempre estava pelos ajustes. Bufava, fechava armários com força, andava mais depressa pelas divisões. Às segundas-feiras era pior. Claro que era pior: tínhamos estado em casa durante o fim-de-semana, desarrumando, deixando tudo num caos. Muitas vezes, antes de ela chegar, tentei “dar um jeito”, por vergonha, por respeito. Não foi – sei-o hoje – o suficiente. Ela deixava-nos a casa, todos os dias, impecável. Limpa, arrumada, a cheirar bem. |
Eu nem fazia ideia do que ela via, todos os dias, porque ela fazia sem me contar. Ou seja: foi só quando ela se reformou que eu percebi que os meus filhos tinham crescido como eu, sem saber fazer, deixando lastro, desordem, caos. Ela fazia a sua magia, todos os dias, e a desordem deles só me aparecia aos olhos, no final do dia, como ordem e limpeza. |
Não me dei conta, até a perder, que uma casa, quatro filhos e dois cães, é um trabalho hercúleo. É um trabalho para super-heróis. Sempre a valorizei, atenção! Sempre disse que preferia ter a dona Emília do que ter filhos em colégios (para choque de algumas amigas), mas não sabia, não podia saber, o tanto que ela sempre fez, até ter de ser eu a fazer. Há, a propósito, um livro com um título genial, A Housekeeper is cheaper than a divorce (“uma empregada doméstica é mais barata do que um divórcio”), e acho mesmo que pode ser uma chave para uma família mais equilibrada e estável. |
Quando ela nos informou que se ia reformar, senti o chão fugir. Compreendi, claro, que tinha chegado o seu momento de descansar. Fiquei feliz por ela, juro que sim. Mas senti que a minha vida, a nossa vida, não ia ser a mesma. E não foi. No dia em que nos entregou a chave de casa, que tinha em seu poder há tantos, tantos anos, chorámos as duas, num abraço sincero. Fizemos-lhe um lanche surpresa de despedida. Ela emocionou-se. Eu chorei que nem vos digo. Durante algum tempo, sempre que falávamos ao telefone, eu sentia um nó na garganta. Ainda sinto, para ser honesta. |
Quem veio a seguir tinha uma pesada herança e uma expectativa enorme em cima dos ombros. Tentámos compreender que não há duas versões da mesma pessoa, tentámos aceitar as diferenças, lidar com as mudanças. Mas não foi possível. Havia questões irremediáveis, inconciliáveis. E foi tão complexo e duro, que nunca mais consegui meter ninguém em casa. |
Desde há mais de um ano que sou eu, o Ricardo e os miúdos que fazemos tudo. Mais eu, que sou freelancer, e que, por isso, trabalho em casa e, nos intervalos de um texto, faço uma máquina de roupa, apanho meias do chão, aspiro, faço camas, luto contra os pelos dos cães. Sinto-me como quando casei e estava a “brincar às casinhas”. Com uma diferença: agora não acho graça nenhuma à brincadeira, mas, por outro lado, sei perfeitamente tudo (ou quase) sobre o assunto. Sei o que é um rodapé sujo, vejo porcaria em sítios que não sabia que acumulavam lixo, descubro dedadas em vidros e em espelhos. Reconheço a sujidade, porque antes não a via, e agora vejo, reconheço que tenho alguns filhos muito pouco educados para estas tarefas, e ando a tentar remediar a mão (se bem que não é fácil – são anos a contar com os outros para fazer aquilo que deviam ter sido eles a acostumar-se a fazer). |
Quando li o livro Becoming, de Michelle Obama, fiquei particularmente (bem) impressionada com o facto de ela obrigar sempre as filhas a fazerem a cama de manhã, apesar do séquito de empregados que tinham na Casa Branca. Pensei: ora aqui está, uma mulher como deve ser. E, atenção, tenho a certeza de que ela teria feito o mesmo se tivesse tido filhos, em vez de filhas. O género importa pouco quando se trata de formar seres humanos para as várias dimensões da vida. E ter uma casa, e cuidar dela, em princípio, é uma delas (assim desçam os preços do imobiliário). |
Tenho muitas saudades da dona Emília, não só pelo que fazia por nós, mas porque acompanhou todas as fases mais importantes da nossa vida. Esteve lá em cada nascimento, em cada nova aventura, em cada novo emprego, na chegada dos cães, na morte de pessoas importantes para mim, e no estado em que isso me deixou, na doença da minha mãe, na incessante procura de uma nova casa, nos entusiasmos e desvarios, nas alegrias e nas tristezas. Foi muito mais do que a nossa empregada. Foi um pilar, uma amiga, uma confidente, uma imensa ajuda. Foi – e é, e será sempre – da nossa família. Obrigada, dona Emília. E obrigada a todas as Emílias que, sem fazerem parte das famílias, são tão cruciais para que elas se mantenham unidas e em harmonia. Obrigada a todas as Emílias que são família. |
E obrigada ao leitor quem esteve aí durante estas 63 (se não me falham as contas) newsletters do Observador. Até sempre! |
Vale a Pena… |
… Passar um Halloween em Família – Mala-posta assombrada no Museu das Comunicações, em Lisboa
Uma tarde em família com uma diligência (carruagem) de finais do século XVIII que passava muitas vezes por situações assustadoras, porque era frequentemente alvo de bandos de assaltantes. Aqui podem conhecer algumas das personagens e terem uma tarde… medonha (no bom sentido).
Sábádo, 28 de Outubro, das 15h00 às 16h30. Bilhetes a quatro euros.
Museu das Comunicações, Rua do Instituto Industrial, 16, Lisboa |
… Ver o Capuchinho Vermelho – o Musical, no Porto
É só no dia 5 de Novembro, no Coliseu Ageas, mas, como esta é a última newsletter e os bilhetes podem esgotar, deixo já a dica. Neste musical vira-se a história ao contrário e dá-se-lhe uma nova dimensão. Inventaram-se personagens, criaram-se canções e acrescentaram-se mensagens (como o direito à diferença, a ambição ou a ecologia). Há um cão que quer ser lobo, um lobo que gosta de bolos, amigos que são família e uma avó que fala com a natureza. É uma nova versão do clássico, revista e aumentada, digamos assim.
Dia 5 de Novembro, às 16h30. Bilhetes a partir de 12 euros.
Coliseu Ageas Porto |
… Assistir à peça Branca de Neve e o Espelho do Mundo, em Lisboa
No Parque Mayer, junto à Avenida da Liberdade, é uma adaptação do clássico dos irmãos Grimm aos tempos modernos, abordando temas como a diversidade, a inclusão e o bullying.
Ao longo dos sesssenta minutos da peça, crianças e adultos vão poder viajar num cenário de sonho, com atores, atrizes, bailarinos, acrobatas de todas as formas e tamanhos. A banda sonora original tem a direção artística do ator Ricardo Castro, tal como aconteceu com O Corcunda de Notre Dame, musical que foi gravado para a RTP1 em 2022.
Sábados e domingos, às 15h30. Bilhetes a partir de 12,50 euros.
Parque Mayer, Palco Ticketline |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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