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Tarde, sob pressão e de forma trapalhona e incompleta o Governo lá apresentou o seu pacote de medidas para a inflação. Não há que agradecer: trata-se de devolver só uma parte do que tem cobrado a mais. |
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Há sensivelmente três anos, no final de Março de 2020, dei a um Contra-corrente exactamente este título: Costa ou a arte de liderar o país às arrecuas. Na altura a propósito da forma como tinha demorado a agir para enfrentar a pandemia, pois por regra preferia tomar as medidas que os portugueses lhe pediam do que antecipar políticas que pudessem ser mais efectivas Foi sempre assim nos dois anos de Covid, está a voltar a ser assim no combate à inflação. |
Durante muito tempo António Costa, o seu actual ministro das Finanças e o seu anterior ministro das Finanças agora governador do Banco de Portugal empenharam-se em garantir que a inflação era coisa passageira. Agora que a casa está mesmo a arder e o descontentamento social saiu à rua – para quem não lê com atenção os boletins do INE refira-se que desde 10 de Março se sabia que a inflação na classe “bens alimentares e bebidas não alcoólicas” estava nos 21,5%, valor mais elevado desde maio de 1985 –, lá veio finalmente o pacote anunciado esta sexta-feira. E anunciado à pressa, de forma claramente improvisada, com o primeiro-ministro no estrangeiro e as negociações mal encetadas para saber quais os produtos que vão beneficiar de IVA a 0%. Ou seja, anunciadas de forma trapalhona, o que parece ser cada vez mais uma marca deste governo, o governo dos “power-point” e das promessas que nunca se materializam. |
Claramente este não era o “plano a” – o “plano a” era culpar as cadeias de distribuição pela alta da inflação, não tomando medidas mas pondo o gabinete de comunicação do Governo ao comando, mesmo quando isso implicou mobilizar organismos públicos (neste caso a ASAE) para acções de propaganda. A coisa não correu bem, como já não tinha corrido bem a apresentação do pacote “+ Habitação”, com as sondagens a mostrarem que os portugueses não acreditam nas medidas propostas. Foi então necessário passar a um “plano b” que incluirá medidas que se garantia há pouco tempo que nunca seriam tomadas, como a descida do IVA. |
Seja o que for que pensemos das medidas deste pacote (e eu estou entre os que acham que mesmo assim se terá evitado, por agora, o disparate maior, que seria a fixação de preços, uma política com muito más provas dadas), a verdade é que há duas coisas que as caracterizam: a primeira é que o governo está apenas a devolver uma parte do euromilhões fiscal que tem representado para os cofres do Estado a subida da inflação; a segunda é que, por regra, são medidas que aumentam o número de dependentes do Estado, através da multiplicação dos subsídios, alguns dele completamente absurdos e difíceis de reverter (como o que será atribuído aos inquilinos, por exemplo). |
É bom termos presente o seguinte: o ano passado as receitas das administrações públicas cresceram mais de 10 mil milhões de euros (números do boletim de Janeiro da execução orçamental que o INE ainda terá de validar). Só a receita fiscal cresceu mais de 7 mil milhões de euros. Isto significa que o Estado só está a devolver parte do que cobrou a mais no ano passado, eu até diria uma pequena parte. Não vejo pois razões para estarmos especialmente gratos, até porque ao optar por subsídios (aumento da despesa pública) em vez de optar pela redução da carga fiscal, o Governo não alimenta apenas dependências, também torna aperta o controlo do Estado sobre o país e a sua economia. |
PS. Sobre este pacote de medidas, assim como sobre as causas e os efeitos efeitos da inflação, recomendo a leitura de Helena Matos (Os vulneráveis da sexta-feira), de Helena Garrido (O Governo a alimentar revoltas), de Ricardo Reis (Tabelar os preços), de João Vieira Pereira (O que esconde a solidariedade de Costa) e de Luís Aguiar-Conraria (A cavalgada dos preços da alimentação). |
Xi em Moscovo, ou como tudo está a mudar |
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O presidente chinês, Xi Jinping, esteve esta semana em Moscovo para aquele que foi o seu 40º encontro com Vladimir Putin. Houve proximidade entre os dois líderes, mas não a convergência que as autoridades russas desejariam: Xi não apoiou a dita “operação militar” na Ucrânia nem se comprometeu com o envio de armas. Mesmo assim foi um encontro cheio de sinais, alguns deles inquietantes e a recomendarem uma acção ponderada, como notou Miguel Monjardino no Expresso: |
“Xi e Putin concluíram que este é o momento da ação e, portanto, de maior cooperação política. Estamos a caminho de um período que poderá ser muito volátil e inseguro na política internacional. A necessidade de Putin sobreviver a todo o custo em Moscovo, um Xi confiante no futuro do seu país, mas com crescentes dificuldades internas, e um novo ciclo eleitoral nos Estados Unidos que não deverá ser propício a reflexão ponderada deverão aumentar o risco político. A prudência será uma virtude preciosa nos próximos anos.” |
Da imprensa internacional, sobre esta visita, aqui ficam algumas referências: |
- Why Xi can’t solve Putin’s Ukraine problem, de Roland Oliphant no Telegraph, de onde retirei o cartoon acima, que me pareceu resumir brilhantemente o estado actual das relações entre os dois países.
- Xi Jinping’s chilling words for Putin, de Ian Williams na Spectator, uma interessante análise sobre a estranha troca de palavras entre Xi e Putin no final dos seus encontros, mesmo antes do líder chinês entrar para a sua viatura.
- The world according to Xi, o editorial que faz a capa da The Economist desta semana e onde se descreve assim a ambição da China: “a superpower that seeks influence without winning affection, power without trust and a global vision without universal human rights. Those who believe this will make the world a better place should think again”.
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Um vídeo e uma homenagem surpreendentes |
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Na semana em que passaram 20 anos sobre a invasão do Iraque e muitos recordaram os erros então cometidos pelos Estados Unidos e pelo seu presidente, George W. Bush, Nicholas Kristof, um dos colunistas do New York Times que mais o criticou fez um vídeo para celebrar uma outra política desse mesmo presidente, a PEPFAR, de que quase ninguém ouviu falar mas que terá salvo 25 milhões de vidas. Sim, 25 milhões de vidas como se explica no vídeo In This Story George W. Bush Is The Hero. É curtinho, são só 5 minutos, e vale a pena ver, até para saber o que é a PEPFAR (tem a ver com Sida e tem a ver com África, o resto descubra por si). |
Crónicas deliciosas |
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Não tenho por hábito ler livros de crónicas – prefiro lê-las quando vão sendo publicadas. Muitas vezes sinto que resistem mal ao tempo, até por terem sido escritas em cima da actualidade. Mas às vezes há excepções – e surpresas. Será o Cozinheiro Boa Pessoa? (Relógio de Água) reúne as crónicas que Javier Marías escreveu em 2019 e 2020 na revista dominical do El Pais e, ao lê-las, ainda ficamos com mais saudades do romancista precocemente desaparecido no passado mês de Setembro, aos 70 anos. Que a sua escrita era cativante já sabíamos, que era também acutilante desconhecíamos. Implacável (chega a considerar que um político tem cérebro de ervilha…), o seu olhar sobre Espanha, a política espanhola, o Vox e o Podemos ou a deriva catalã surgem neste livro a par com denúncias mordazes dos excessos do politicamente correcto. Um livro que não tem de se ler todo de seguida, antes de se ir degustando com prazer. |
O mesmo sucede com outra obra deliciosa, Com os Holandeses (Quetzal) de J. Rentes de Carvalho. O livro é já antigo (foi editado originalmente na Holanda em 1972) e surgiu a pedido, quase imposição, do seu editor. Tendo chegado à Holanda em 1956, com muitas razões de queixa e muita coisas para contar sobre os holandeses, incluindo também as boas, Rentes de Carvalho alcançou um sucesso imediato quando publicou este livro que é, no fundo, uma sucessão de apontamentos e crónicas sobre o povo que o acolheu. Foi um sucesso imediato, exactamente o contrário do que viria a suceder muitos anos depois com A Ira de Deus Sobre a Europa, escrito já neste século (2006) mas onde dá conta de uma profunda inquietação relativamente ao modo como o seu país de adopção e a Europa têm evoluído. Com os Holandeses, mesmo retratando alguns dos péssimos hábitos dos locais (e dando também conta da sua péssima comida), é um livro muito mais luminoso e, com frequência, divertido, ou não fosse o autor alguém que combina uma enorme independência de espírito com um sentido de observação incomparável. |
As traseiras das nossas cidades |
Aqui há uns anos levei uma amiga minha, que vivia há décadas em Lisboa, a visitar Chelas para ela conhecer alguns dos edifícios de bons arquitectos que lá existem. Ela não conhecia e ficou surpreendida, mesmo tendo vivido não muito longe numa fase da sua vida. Na verdade ninguém, ou quase ninguém, visita bairros sociais – que também não estão por regra nos roteiros turísticos (o único bairro social, ou algo parecido com isso, que julgo fazer parte dos roteiros turísticos é, penso eu, o Karl-Marx-Hof em Viena, que eu já visitei, um bloco de apartamentos para operários construído entre 1927 e 1930 e que se diz ser o edifício residencial mais longo do mundo, com 1100 metros de comprimento). Mas se visitássemos mais os nossos bairros sociais descobriríamos realidades muito diversas e que estes não correspondem muitas vezes aos preconceitos vigentes. De vez em quando passo por alguns deles, até para perceber como evoluíram aos longo dos anos – das décadas – e como foram correspondendo a diferentes fases e prioridades. Numa dessas visitas passei por um conjunto de habitações sociais que não conhecia, as da Quinta dos Ourives, na lisboeta freguesia do Beato, porventura por estarem como que “escondidos” por detrás de um dos mais referidos bairros do tempo do Estado Novo, o da Madre Deus. São desse bairro as imagens abaixo, relativas a construções de épocas diferentes, e lembrei-me delas a propósito de um dos debates desta semana, o sobre a intervenção de Cavaco Silva num evento sobre os 30 anos do PER, o programa da habitação pública que permitiu acabar com dezenas de milhar de barracas, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. |
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Como sobre este tema há muita ignorância, e não basta visitar as traseiras das nossas cidades que são alguns bairros sociais para a superar, recomendo-vos também o trabalho coordenado pelo arquitecto Ricardo Costa Agarez, Habitação – Cem anos de Políticas Públicas em Portugal (1918-2018), um belíssimo estudo com mais de 500 páginas e muitas imagens que tem a vantagem se estar acessível para download em versão PDF. É que houve um tempo, como se recordou num ensaio de Sérgio Barreto Costa para o Observador, O problema da habitação, que houve um tempo em que, para entregar casas ao povo, o Estado “metia as mãos na massa e não na argamassa dos outros”. |
Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |