Sexta-feira, 24 de Março de 2023. O ministro das Finanças apresenta uma série de medidas rotuladas de apoio às famílias mais vulneráveis — 30 euros por mês ao longo de 2023 — medidas estas que sucedem ao apoio extraordinário de 240 euros para famílias mais vulneráveis de Dezembro passado que por sua vez sucedeu ao apoio de 60 euros atribuído às famílias mais vulneráveis em Julho de 2022 que por sua vez tinha sido antecedido pelo apoio extraordinário para as famílias mais vulneráveis decidido em Março

A cada um deste anúncios sucedem-se horas de comentários sobre a dimensão dos “apoios dados aos mais vulneráveis”, expressão que em si mesma dá conta de como algures se trocou em Portugal a esperança de viver melhor por uma espécie de vida assistida, o vulnerabilismo. Sim, entre a concepção assistencialista dos pobrezinhos de Marcelo Rebelo de Sousa e a fé estatista de António Costa de que deitando dinheiro para cima dos problema e das pessoas tudo se resolve, acabámos no vulnerabilismo, essa nova face do assistencialismo-socialista em que o governo não se destaca pela forma como governa mas sim pelo que “dá aos mais vulneráveis”.

Mas quem são os “mais vulneráveis”? Em Março de 2022 eram as 762 mil famílias “ beneficiárias da tarifa social de eletricidade” que por sua vez era atribuída a quem provasse já receber outros apoios como o complemento solidário para idosos; rendimento social de inserção; prestações de desemprego; abono de família… Em Março de 2023, são mais do dobro: 1,7 milhões de agregados familiares. Mas em Outubro de 2022, a vulnerabilidade chegou a quem ganhava até 2700 euros brutos por mês e graças a essa vulnerabilidade teve direito a um apoio de 125 euros.

Os vulneráveis não são apenas pobres. Os pobres eram pobres porque a sociedade era injusta e os governos maus. Sobretudo, um pobre tinha o direito de não ser pobre. Os vulneráveis ao contrário dos pobres não só nunca se libertam desse estatuto como ele se agrava e alarga a cada novo facto, seja ele bom ou mau. Há também que ter em conta que para cada vulnerabilidade há uma política pública à espera de ser aplicada, um governante com um plano, um activista com a sua causa devidamente patrocinada.

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Os pobres podiam aspirar a deixar de ser pobres porque mudavam de trabalho, de sítio, porque emigravam, porque votavam noutros políticos. Já os vulneráveis são como folhas de árvore que a cada reviravolta do vento são atirados para mais longe. Só a bondade de quem detém o poder os protege da hostilidade do mundo. Logo, qualquer mudança, seja de quem governa, seja na sua própria vida, é vista como uma ameaça a essa sequência de apoios que, qual carrossel de dominós, se pode desmoronar se o governo mudar, se mudar de emprego, se mudar de casa.

Os pobres deixavam de ser pobres se o poder mudasse. Os vulneráveis, antes pelo contrário, temem que o poder mude.  Os vulneráveis são o pobrezinho das sextas-feiras dos tempos pretéritos, ou, para quem preferir a versão literária, o pobre da menina Teresinha de uma crónica de Lobo Antunes, com a substancial diferença que a menina Teresinha não se candidatara a governar o país. E aqui chegamos ao outro lado do vulnerabilismo, o de quem governa os vulneráveis.

Quanto mais o governo falha mais aposta na distribuição de apoios aos mais vulneráveis. Afinal é tão mais fácil e popular anunciar transferências automáticas (cuja eficácia ninguém pode questionar porque são para os mais vulneráveis!) do que governar de facto. E, contudo, todos os dias a ineficácia dos governos de António Costa contribui não só para que os vulneráveis fiquem mais vulneráveis (leia-se dependentes de quem governa) como também para a vulnerabilização da sociedade.

O elevador social da escola pública gripou. Nunca como nos governos de António Costa se alargou tanto o fosso entre a escola pública e privada. E não, não foi apenas a pandemia a culpada. Ou sequer a principal culpada. O fim dos contratos de associação, a revisão dos programas, a opacidade sobre os resultados e agora este permanente estado de sítio contestatário comprometem as aprendizagens. Não ajudaria mais os vulneráveis uma escola pública a funcionar do que um apoio de 30 euros por mês?

Neste ano de 2023, os comboios pararam ou funcionaram irregularmente de 1 a 8 de Janeiro; 8 a 21 de Fevereiro; 27 de Fevereiro e 1 de Março; 9 a 18 de Março. Agora, para que não nos confundamos no calendário, a greve na ferrovia é anunciada para todo o mês de Abril. Na visão vulnerabilista do mundo logo há quem proponha que se devolva o dinheiro do passe e bilhetes para compensar os utentes, como se o prejuízo fosse simplesmente uma questão de preço do bilhete ou do passe e não o estar a comprometer-se o direito a chegar a horas ao destino, ao trabalho, a casa ou à escola dos filhos por parte de quem os utiliza. Não ajudaria mais os vulneráveis que os transportes públicos funcionassem do que  acenar-lhes com passes gratuitos e apoios extraordinários? O mesmo se pode dizer do SNS ou da justiça.

O crescente foco do governo nos mais vulneráveis, com esse cortejo de conferências de imprensa anunciando apoios, apoios extraordinários e extraordinaríssimos, a par da revelação de planos estatais para combater os inimigos obscuros dos mais vulneráveis, sejam eles os senhorios ou os supermercados, são o reflexo da ineficácia de quem governa mas também da  destruição do estado social enquanto mecanismo de progresso.

O vulnerabilismo é um populismo mas, convém nunca o esquecer, um populismo de falhados.

PS. Há coisas que se percebem melhor vistas. São os chamados casos do só visto, porque contado não se acredita. Veja-se portanto o vídeo que acompanha esta notícia com quase quatro anos do Jornal de Negócios: Antigo edifício do Ministério da Educação passa a residência de estudantes. Uma “ideia fora da caixa”, como lhe chamou António Costa, vai transformar o histórico edifício em alojamento para estudantes. O Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior foi formalmente apresentado e prevê a criação de 14.490 camas em quatro anos.

Tiago Brandão Rodrigues, então ministro da Educação, entrega ao ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, a placa que na avenida 5 de Outubro identificava o edifício do ministério da Educação. Anunciavam-se milhares de quartos a preços fantasticamente baixos: mais de 12 mil camas em todo o país até 2022, com rendas entre 120 a 220 euros. A comitiva ministerial, que também integrava  Fernando Medina, então presidente da autarquia lisboeta, passeia-se pelos corredores do prédio para o qual se previam 600 camas para estudantes e que, a fazer fé nas declarações e nas notícias, estavam a uma passo de ser construídas.  Não foram, como Margarida Bentes Penedo explicou aqui no Observador. Mas o mais interessante é que as 12 mil camas anunciadas em Abril de 2019 voltaram a ser anunciadas em Julho de 2022. E voltaram a sê-lo em em Setembro de 2022, quando, sob o fantástico título “Costa aponta meta de 26 mil camas para estudantes até 2026“, se constata que não se tinha construído cama alguma. mas era uma bela meta. Até que em Janeiro deste ano algo mudou: a ministra Elvira Fortunato inaugurou a primeira residência requalificada ao abrigo do Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior (PNAES). Logo já estão disponíveis 47 camas das doze mil anunciadas em 2019 como se estivessem logo ali já prontinhas e reanunciadas duas vezes em 2022. Só faltam portanto 11953 camas.

Perante tão retumbante falhanço, o que fazem os apologistas do estatismo? Atacam a iniciativa privada. E assim, de repente, os jornais encheram-se de indignações porque Carlos Moedas compareceu na inauguração de uma residência privada para estudantes, com “preços de luxo”, disse o BE, e logo todo o mundo se sentiu na obrigação de condenar o luxo. Infelizmente não só ninguém se indignou com a incapacidade do governo em concretizar o que anuncia como ninguém pergunta: quanto vão custar aos contribuintes os quartos a baixo custo nas residências universitárias públicas? Algo me diz que um pouco mais que o luxo nas privadas.