O preço dos produtos alimentares começou a aumentar ainda antes da Rússia invadir a Ucrânia e a tendência agravou-se, obviamente, quando dois dos países líderes em produtos de base alimentar e fundamentais para a agricultura entraram em guerra. A pandemia e depois o desconfinamento marcaram a primeira fase, com a procura acima da oferta por via do estrangulamento da produção e da distribuição. Estavam ainda os canais de distribuição, e a própria produção, a reerguerem-se da pandemia, quando acontece a guerra na Europa entre dois países que reduzem significativamente a oferta de energia, fertilizantes, cereais em geral e especialmente milho e girassol, base para a alimentação animal (ver aqui uma explicação). Em Portugal tivemos ainda uma seca que contribuiu, de acordo com o INE, para “a segunda pior campanha de cereais de inverno dos últimos 105 anos”. E o Governo sabe isto tudo.

Fomos vendo os preços a aumentar e alguns países foram muito rápidos a adoptar medidas. A Polónia, onde aliás a Jerónimo Martins tem a Biedronka, foi o primeiro a decidir baixar o IVA, logo em Fevereiro de 2022, de um conjunto de produtos que integra a dieta dos polacos – ainda a guerra não tinha começado – e pretende manter essa medida durante o primeiro semestre de 2023. Espanha também desceu o IVA mais recentemente, França optou por um acordo com as grandes retalhistas para terem um cabaz “anti-inflação” com os preços fixados durante um trimestre. E a Grécia optou por decretar que pelo menos um produto da dieta alimentar tem de ter um preço mais baixo, sujeitando-se os retalhistas a um multa se não disponibilizarem essa oferta. Além disso, o Governo de Atenas avançou mais recentemente, desde Fevereiro, com o pagamento de um máximo de 220 euros por mês, que será acrescentado em 100 euros por pessoa com um limite de mil euros para as famílias numerosas, medida esta que será aplicada durante um semestre, custará 650 milhões de euros e vai ser financiada com a taxa extraordinária sobre lucros das petrolíferas.

O que fez Portugal? O Governo convocou os órgãos de comunicação social para a porta dos supermercados, a ASAE anunciou a “maior operação de fiscalização de sempre” e até houve um secretário de Estado a dar entrevistas junto de uma grande superfície. Lançaram-se números de margens brutas de cebolas, cenouras e febras, como se isso significasse alguma coisa.

A ASAE, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, um órgão de polícia criminal que é suposto fazer desse trabalho de fiscalização o seu quotidiano, foi instrumentalizada pelo Governo para a sua campanha de marketing político ou, se quiserem, para envergonhar e pressionar os supermercados porque, aparentemente, não tem capacidade para aplicar outras medidas de política económica. Uma vez que os preços estão a subir há mais de um ano, a taxas crescentes e a atingirem mais de 20% em Fevereiro de 2023, ficámos sem saber se a ASAE fez alguma coisa no passado ou esteve à espera de ordens do Governo.

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Ainda mais grave é o contributo que o Governo e a ASAE deram para a iliteracia económica dos portugueses. Margens brutas, como as que foram divulgadas, nada dizem sobre eventuais abusos nos preços por parte dos supermercados. A diferença entre o preço de custo e o preço de venda de um produto serve para pagar transportes, salários, energia e a infra-estrutura da loja. Além disso, falar de lucros em valores absolutos nada nos diz sobre a rentabilidade – os lucros podem ter aumentado, mas as vendas também, e muito mais, o que se traduz numa rendibilidade mais baixa.

Acrescente-se a estas mensagens indutoras de avaliações erradas e revoltas, o facto de terem colocado em cima da mesa a possibilidade de fixar administrativamente os preços. Era a melhor maneira, como aliás explicou a presidente do grupo Sonae Cláudia Azevedo, para fazer desaparecer os produtos das prateleiras. Há certamente pessoas que ainda se lembram do que foi um tempo de preços administrados – um caso interessante foi o da banana que contribuiu para fazer fortunas e para a existência de um mercado paralelo florescente. Teríamos certamente de andar a comprar cebolas na clandestinidade, enquanto víamos os supermercados vazios.

(Como várias vezes se tem alertado aqui, não podemos ser uma economia de mercado e, ao mesmo tempo, querer ser uma economia de planeamento central com preços determinados por decreto. É a melhor maneira de não termos nada).

Porque é que o Governo fez esta operação absurda e perigosa é a grande questão. Sabemos hoje que, no Verão do ano passado, o Ministério das Finanças pediu à APED, Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, dados sobre um conjunto de bens essenciais para estudar a possibilidade de baixar o IVA. O Ministério das Finanças fez simulações para essa descida do IVA e nunca divulgou os resultados. Desistiu, aparentemente, de descer o IVA dos bens alimentares básicos com o argumento de que se corria o risco de a diferença ficar a alimentar as margens dos supermercados.

Temos todas as razões para admitir que as razões pelas quais não desceu o IVA são financeiras e políticas. Financeiras porque toda a receita é pouca para os objetivos de redução acelerada do défice para diminuir a dívida e colocar Portugal um bocadinho mais ao abrigo de uma eventual tempestade financeira – estas últimas duas semanas, com a banca a tremer nos EUA e na Suíça, mostram que não estamos livres disso. E razões políticas puras, de campanha, porque uma descida temporária tem de ser seguida por uma subida e o Governo, como ninguém, não sabe quando é que teria de ser feita essa reversão da descida do imposto que seria sempre vista como uma subida – e há eleições no próximo ano.

Repare-se que o IVA é o imposto que garante mais receitas por causa da inflação – o Estado está realmente a ter uma receita extraordinária de IVA que, se fosse uma empresa, configurava aquilo que os governos europeus têm classificado como “lucros excessivos”. Mas Fernando Medina não quer prescindir dessa receita, querendo antes usá-la para reduzir o défice público. Reduzindo ao absurdo, também as empresas poderiam usar esses lucros caídos do céu da inflação para investirem – o que aliás teria sido mais inteligente, um imposto agravado sobre lucros distribuídos em vez de uma taxa que, como veremos, dará muito pouca receita.

Ninguém está aqui a dizer que as grandes empresas de distribuição são umas santas. Mas o problema que mais colocam à economia está longe de ser este, dos preços, com o qual também se preocupam pelos efeitos que podem ter nas suas vendas e também na sua imagem, num tempo em que a responsabilidade social tem um valor real. O impacto mais nefasto da grande distribuição acontece há décadas e está relacionado com o poder de mercado que têm junto de uma produção que, no sector agrícola, é bastante fragmentada. E esse é um problema que nunca preocupou Governo nenhum.

A breve prazo vamos, tudo o indica, ver os preços a subirem mais lentamente. Os índices alimentares da FAO revelam já quebras continuadas, com os mercados a ajustarem-se à redução e ausência da produção russa e ucraniana. Além disso, os preços na produção industrial, compilados pelo INE, mostram também algum alívio na subida dos preços. O Governo poderá sempre dizer que foi graças à sua campanha, com o problema a resolver-se por si. Mas esta sua actuação tem um preço.

A política económica tem as medidas tradicionais, mas conta igualmente com ferramentas não ortodoxas como é o caso da gestão de expectativas. Como o Governo não quis usar uma medida tradicional – como a redução do IVA – usou a heterodoxa ferramenta de “envergonhar e pressionar”, instrumentalizando uma entidade da administração pública e aproveitando-se da iliteracia dos portugueses. Mas esta táctica, além de não dar qualquer garantia de conseguir moderar a subida dos preços da alimentação, tem o elevado risco de não apenas afugentar o investimento privado como criar uma onda de revolta irracional.

Usar o elevado preço da comida como arma de campanha política é perigoso. Ninguém quer depois ouvir o ministro da Economia a explicar que não se pode diabolizar as empresas. Aquilo que o Governo fez para combater a subida dos preços da alimentação, tal como na habitação, foi atirar achas para a fogueira do radicalismo e da revolta, sem resolver problema nenhum.