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Ao ouvirmos primeiro o depoimento de Eugénia Correia e depois o de João Galamba foi como se regressássemos ao pesadelo do socratismo. Foi pior: lembrámo-nos de como nunca de lá verdadeiramente saímos. |
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Estava no carro quando comecei a ouvir, esta quarta-feira, o depoimento de Eugénia Correia. Não lhe via a cara, apenas o som das palavras. Não conseguia seguir a linguagem corporal, apenas as entoações de voz. Mesmo assim tive quase de imediato uma reacção quase epidérmica – a de que esta gente, mesmo sem dar por isso, ou mesmo procurando disfarçar, age, comporta-se, fala como se fossem donos disto tudo. No dia seguinte, ao ver como João Galamba se agarrava à “chefe do meu gabinete” para não sair do guião previamente estudado, confirmei a percepção de que, agora como nos tempos de José Sócrates, o que conta é a lealdade ao poder e a única verdade que existe é a das “narrativas”. |
É normal despedir alguém pelo telefone? Sim, até transmite uma sensação de serenidade a quem o faz. É normal proibir de imediato esse alguém de voltar ao seu local de trabalho? Sim, o fiel colaborador da véspera passa a ser o vilão do dia quando quebra o sacrossanto dever de fidelidade. É comum conhecer-se ou espiolhar-se a lista dos telefonemas realizados por um colaborador? Sim, se for alguém com autoridade para pagar a conta do telefone. É habitual lembrarmo-nos de tudo, sabermos a hora exacta de todos os telefonemas, mas depois não nos recordarmos de onde estávamos quando os fizemos ou, pior ainda, de ainda não sabermos quem fez a fatal chamada a dar instruções para fechar as portas do Ministério? Sim, porque essas são as regras da “narrativa”. |
Nestes dias tem-se discutido muito sobre quem mentiu ou não mentiu, ou sobre quem está a mentir mais porque já se percebeu como a verdade pode ser maltratada mesmo num testemunho em que o perjúrio pode ser crime. E todos intuímos que, mesmo quando conhecermos as horas de todos os telefonemas, haverá sempre partes destas “narrativas” que ficarão por clarificar. |
Nestes dias tem-se discutido menos o que significa este modo de actuar, e de tratar tanto a coisa pública como os cidadãos, esta forma de exercer o poder como se nunca houvesse limites nem escrutínio. Como se ainda vivêssemos no tempo da maioria absoluta de José Sócrates (se é que o PS alguma vez saiu dela). |
O que também é um sinal dos tempos e do país que ainda somos. Na verdade os socialistas, e entre todos eles António Costa, interiorizou que os pecados do consulado socrático se limitariam à gestão desregrada dos dinheiros públicos, e portanto adoptou o mantra das “contas certas”. Funcionou, tem funcionado, eleitoralmente. |
Em contrapartida nunca os socialistas quiseram fazer um verdadeiro luto do socratismo, nunca quiseram demarcar-se da sua forma autoritária de exercer o poder, nunca quiseram perceber, ou simplesmente tentar perceber, como é que tinham convivido (e caninamente defendido) tantos anos com alguém com as características pessoais de um José Sócrates. No fundo nunca quiseram perceber que o problema do socratismo não era apenas ter uma maçã podre no seu coração, era muito mais do que isso. Era uma forma de olhar para o país, e para o poder, como se naturalmente tudo lhes pertencesse. |
A forma como Eugénia Correia explicou que João Galamba podia tratar Frederico Pinheiro com a mesma discricionariedade com que um senhor noutros tempos trataria (e castigaria) um seu escravo é reveladora de quem está habituada a pôr e dispor, de alguém que exerce o poder sem limites – limites morais ou éticos, mas também limites políticos ou legais. De alguém que acha que dita as regras. |
Eugénia Correia trabalhou primeiro com o mais fiel escudeiro de José Sócrates, Pedro Silva Pereira, e foi depois assessora do próprio primeiro-ministro nos anos da sua maioria absoluta? Check. |
João Galamba tornou-se notado por ser um dos mais vocais cães de fila do socratismo? Check também. |
Mas unirmos e pontos e percebermos que estes protagonistas saíram directamente da escola do antigo primeiro-ministro não explica tudo, não explica sequer o essencial. O essencial é que hoje, como nesse tampo, os socialistas se acham donos do regime e, por isso, pensam que não só tudo lhes é permitido, como são eles que determinam o que é permitido aos demais. Ainda este sábado, por exemplo, o seu líder parlamentar, Eurico Brilhante Dias, veio dizer que Cavaco Silva, por ter dito umas verdades duras como punhos e que os portugueses entendem muito bem, afinal usou “uma linguagem ofensiva e antidemocrática”. Porquê? Porque em Portugal são os socialistas que determinam o que é ou não é democrático, ou o que é ou não é tolerável, ou o que é ou não é ofensivo. |
“Uma República de Garotos” como lhe chamou António Barreto? Sim, se pensarmos que “estamos perante pessoas que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público”. |
Temos mesmo uma ameaça à democracia, como se interrogou Rui Ramos? Seguramente, sobretudo se pensarmos na sua “cultura política de cinismo, para a qual a luta pelo poder não admite regras nem deve ter limites”, sobretudo se reconhecermos que “estamos perante um grupo para quem a ocupação do Estado, e o controle de instituições e empresas, da banca à comunicação social, deve ser praticado sem quaisquer escrúpulos”. |
Nas anteriores edições desta newsletter falei como este era o governo das sondagens e do focus group, de como para os socialistas o essencial era conservarem o poder e até me interroguei sobre se o país não ficaria melhor sem um Governo, este ou outro parecido. Aquilo a que assistimos nos últimos dias leva-me a reforçar a minha preocupação, regressando à frase célebre de Lord Acton – “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. É verdade, não duvidemos, pelo que é bom recordar que essa frase não acabava aí, Acton ainda acrescentou que era por isso “que os grandes homens são quase sempre homens maus”. Eu ainda iria mais longe e diria que é ainda mais ameaçador quando homens pequenos se tomam por grandes homens. |
Porque vale a pena ler Maria Filomena Mónica |
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Gosto muito de Maria Filomena Mónica – gosto do que escreve, gosto da sua maneira de estar, gosto da sua radical independência e imprevisibilidade. Não posso dizer que li tudo que ela escreveu, mas li bastante, e pego sempre em cada novo livro que edita com curiosidade – e nos últimos anos ela tem escrito praticamente um por ano. Saíram agora mais dois, sendo um dela – Os Livros da Minha Vida – e o outro o resultado de uma maratona de conversas com João Céu e Silva – Uma Longa Viagem com Maria Filomena Mónica. Este último chegou-me primeiro às mãos – com uma simpática e certeira dedicatória do autor: “Se há uma mulher irreverente no nosso país ela chama-se Filomena Mónica” – e viu-se rapidamente envolvido em controvérsia por causa de uma pré-publicação no Diário de Notícias e das revelações aí feitas sobre alguns hábitos sexuais de… 1968. Compreende-se a discussão sobre memórias antigas, não se deve reduzir o livro a elas, até porque o livro de Céu e Silva é sobretudo sobre os livros que a Mena (“não gosto do nome Filomena, porque era o de uma santa virgem e mártir”) foi escrevendo ao longo da vida e o que eles revelam sobre o nosso país. |
Já Os Livros da Minha Vida não é apenas sobre os livros que escreveu, mas também sobre os que leu, sendo que nele se vai desde o primeiro livro que comprou, O Pequeno Lorde, de Frances Hodgson Burnett, até a muitos dos que se foram acumulando em sua casa até invadirem o seu quarto, onde hoje tem uma estante que lhe proporciona a singela felicidade de acordar e ficar na cama, apenas a olhar para as lombadas dos livros. Mais importante do que isso, é uma revisita à forma como foi conhecendo o mundo o seu pensamento foi evoluindo, sobretudo por influência do que leu, e conheceu, no Reino Unido. É por isso uma espécie de autobiografia intelectual onde nos conta como foi passando do fascínio por Marx para depois descobrir o liberalismo e os seus pensadores (Constant, Mill, Tocqueville), sempre num quadro de grande curiosidade e grande abertura. É também um retorno constante à Inglaterra onde estudou e que depois aprendeu a amar, uma ligação que no seu tempo ainda era rara – é de uma geração que cresceu muito mais influenciada pelo pensamento de origem francesa – e que hoje considera fundamental para a sua formação. “Talvez a rebeldia estivesse nos meus genes – escreve quase a fechar –, mas nenhum outro país me transmitiu, como este, a nobreza de alguém que, no meio de uma crise internacional grave, se levanta para afirmar: ‘We shall never surrender’.” Nunca nos renderemos: há de facto poucas formas como esta de reafirmar a força dos princípios liberais. |
A reportagem que eu gostava de ter feito |
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Esta semana, quando estava a preparar um Contra-corrente sobre como os recentes números (positivos) da economia são muito fruto de Portugal estar na moda para o Turismo (Portugal está a ser salvo pelo maldito do Turismo), tropecei numa daquelas reportagens que gostaria de ter feito: My night in the Sistine Chapel. Penso que todos já sonhámos com poder apreciar os grandes museus do mundo sem ser rodeados por visitantes (uma espécie de sonho irreal parecido com aquele de ter o centro de Lisboa ou o centro do Porto só para nós, conservado num tempo irreal como aquele que só se experimenta nos museus), e foi isso mesmo que Cullen Murphy, da The Atlantic, conseguiu ao ter autorização para passar uma noite no Museu do Vaticano, percorrendo os seus imensos corredores depois dos turistas se terem ido embora, no fundo “to explore the collection—the 20,000 sculptures and paintings and other works on display—as night settles over Rome and the galleries adjust to a quieter state of being”. Até por já ter tido a experiência de percorrer praticamente sozinho as ruas de uma cidade habitualmente a transbordar de turistas (falo de Dubrovnic, mas só foi possível porque a guerra na Jugoslávia estava a acabar), reconheço que gostaria de ter também estado naquela visita solitária, e de poder, como o autor da reportagem, ir passando de sala em sala, tomando o meu tempo: |
A door opened, near the Sistine Chapel’s altar, and a man stood silhouetted in a bright rectangle: He was standing at the entrance to the Room of Tears. Immediately upon election, a new pope takes refuge here in order to reflect on the weight thrust upon him, and to change into a white cassock. The man in the doorway, its custodian, allowed us in. |
Apesar de tudo, Israel |
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Israel está, por estes dias, a celebrar o 75º aniversário da sua fundação, a 14 de Maio de 1948. Faço parte dos que, tendo visitado o país várias vezes (as fotos acima foram tiradas numa noite quente de Agosto em Jerusalém), admiram o que o país conseguiu mesmo não ignorando as tensões existentes, os problemas por resolver e os defeitos do seu actual governo. Na Rádio Observador já abordámos duas vezes este aniversário com alguma profundidade. Em Os 75 anos de Israel e o esqueleto de Ricardo III Rui Ramos recordou como é que o país nasceu no programa “O Resto é História” e eu debati com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, num “Conversas à Quinta”, os desafios que hoje se colocam ao estado judaico – Israel na crise dos 75 anos: um país impossível? Há mesmo assim mais algumas leituras que gostava de recomendar. |
No New York Times Bret Stephens defendeu que, At 75, Israel Has Plenty to Celebrate, até porque “If the success of a society can be measured by the speed at which the miraculous becomes the mundane, Israel is doing fine”. Sem ignorar as divisões dos dias que correm, alinha depois vários argumentos para sustentar por defende que esta experiência é um sucesso, nomeadamente este: “Israel welcomed nearly 75,000 newcomers in 2022, the equivalent of more than 2.5 million immigrants to the United States (or more than twice America’s legal intake). Nations that attract immigrants tend to succeed.” |
Já em Israel Looks in the Mirror o Wall Street Jounal parte da recensão de um livro de Daniel Gordis, ‘Impossible Takes Longer’, para apresentar um balanço também positivo, mas de alguma forma mais problemático. Por exemplo: “Israel’s greatest accomplishment, Mr. Gordis knows, is that it exists. Jews can no longer be, on a whim, oppressed and humiliated, beaten and killed, with no ability to defend themselves and nowhere to run. This is an extraordinary change, reversing two millennia of precarity. But, Mr. Gordis reminds us, Zionism promised not only to save Jewish people, but to heal them”. |
São duas perspectivas interessantes e informadas sobre um país que, apesar da reduzida dimensão, continua a ser ao mesmo tempo vários países, às vezes sobrepostos no mesmo espaço, como é impossível deixar de notar em Jerusalém, algo que as três fotografias que acima recordo de alguma forma deixam entrever: quase no mesmo espaço, judeus ortodoxos rezavam junto ao Muro das Lamentações, jovens recrutas dos dois sexos relaxavam junto a uma Menorá, o tradicional candelabro judaico de sete braços, tudo isto numa cidade onde também se localiza um dos locais mais sagrados do Islão e de quase todo o lado se avista o bonito perfil do Domo da Rocha, na Esplanada das Mesquitas. |
Foi já há nove anos. Tanto tempo, e tanto ainda pela frente |
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19 de Maio de 2014. Foi nesse dia que o Observador nasceu. No Bairro Alto, o antigo bairro dos jornais, em pouco mais do que uma sala (a que mostro nesta imagem) do segundo andar de um edifício que em tempos alojara o Diário Popular, uma sela com vista para o Conservatório Nacional. Éramos então umas quatro dezenas, somos hoje quase centena e meia, continuamos a crescer e temos demonstrado, passo a passo, como o impossível é possível mesmo em Portugal, mesmo num tempo em que tanto se desmerece a actividade dos jornalistas. |
Percorremos um imenso caminho, fomos além do que imaginávamos quando ainda éramos apenas aquela sala vazia, sabemos que temos mais metas ambiciosas para alcançar e ultrapassar. Como recordou António Carrapatoso na mensagem que esta sexta-feira enviou a todos os que trabalham no Observador para assinalar o 9º aniversário, não nos esquecemos que continuamos a ter como missão “contribuirmos para termos no nosso país uma cidadania cada vez mais informada, esclarecida, escrutinadora, confiante e independente”. Cá temos estado e cá continuaremos a estar, para desgosto dos que prefeririam ter apenas o país do respeitinho. |
Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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