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Numa semana onde o Presidente da República quis assinalar sete anos de mandato com uma entrevista recordamos uma história de solidão e uma salada. Isto para além de falarmos dos riscos do populismo de esquerda a propósito do México e da importância dos Grandes Livros a propósito da chegada a Portugal – 35 anos depois – de uma obra notável. |
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Quantas TAC’s já terá feito Marcelo Rebelo de Sousa? A pergunta veio-me à cabeça quando estava a ouvir a mais recente entrevista do nosso Presidente da República – a entrevista dos sete anos de mandato. A certa altura, ao comentar as trapalhadas do actual Governo, Marcelo disse que, mesmo quando ultrapassadas, deixavam marcas, e comparou essas marcas com a acumulação de radiação que recebemos se fizermos uma TAC. Sabendo eu que a quantidade de radiação emitida por uma TAC é relativamente reduzida (corresponde à radiação que recebemos naturalmente em três anos de vida, o que significa que Marcelo terá de ter feito pelo menos 25 TAC´s para que estas lhe tenham produzido o mesmo efeito que o simples facto de “andar por aí”, e já nem falo de “andar por aí” ao sol ou a caminho de umas braçadas na baía de Cascais), imaginei que o paralelo bastante absurdo (as trapalhadas do Governo deixaram já uma marca bem maior que uma mão cheia de TAC’s) só se justificava pela conhecida hipocondria de Marcelo. Mas depois de ouvir a entrevista toda e também muitas das reacções que ela suscitou fiquei com a sensação de que o problema de Marcelo não é o seu medo das doenças – é estar a ficar cada vez mais só. |
Marcelo é um político que gosta – que necessita – da popularidade que lhe dava e dá a sua figura mediática, uma popularidade que vai medindo em selfies ou, em momentos de dúvidas maiores, indo comer um gelado ao Santini para avaliar a temperatura da opinião pública. Só que popularidade não é a mesma coisa que empatia ou cumplicidade. Marcelo é popular, mas quem são os seus amigos íntimos, aqueles com quem realmente é sincero e verdadeiro? E quem são os seus cúmplices políticos, os que estão e estarão sempre a seu lado, suceda o que suceder? Era capaz de indicar meia dúzia de nomes, mas sem saber até onde vai hoje a cumplicidade desses amigos ou a fidelidade dos que o acompanham como político. |
Na entrevista Marcelo esteve bem na pele de comentador, e como comentador só podia ter dito algumas das coisas que disse, em especial as farpas que endereçou ao Governo. Houve quem quisesse ver nessas palavras sinais de que, por fim, se estaria a distanciar de António Costa e não mais poria “a mão por baixo” a amparar a governação. Ou ainda quem as interpretasse como uma tentativa de se reaproximar ao seu eleitorado natural. |
Quem assim raciocinou enganou-se. Enganou-se pois ainda ontem o Presidente tratou de amparar o Governo em mais uma das suas manobras de diversão – esta ideia de que a culpa da inflação é dos especuladores e dos supermercados – e enganou-se se pensou que é com este tipo de papas e bolos que Marcelo se reaproxima dos que desiludiu e continua a desiludir. Esses já deixaram há muito de contar com o Presidente, esses sabem quão certeiro foi o diagnóstico sobre o “cata-vento”, esses reagem a estas constantes reviravoltas (quantos opiniões diferentes já teve Marcelo sobre a TAP e a indemnização de Alexandra Reais? e quantas vezes já se contradisse sobre os abusos na Igreja Católica?) com o desespero dos impotentes. E não, não estão nem voltarão a estar com Marcelo. |
Também por isso a sua solidão é maior e não se mede apenas pela queda, ligeira, nos barómetros de popularidade. |
Marcelo, sabemos há muito – contou-nos há sete anos Maria João Avillez num texto que devemos sempre revisitar, Marcelo. Afinal quem é este homem? – que é um “político sem ‘amigos políticos’ mas com a TV”. Nesse texto a jornalista relata uma ida à sua casa de Cascais, onde o encontra sozinho frente a um jantar frugal (“janto todos os dias esta mesma salada”), um Marcelo nessa altura desemparado por estar episodicamente afastado das televisões, logo sem plateias, sem eco, no fundo sem ar. “Quanta solidão naquele prato de salada” escreveu a Maria João, e talvez pudesse voltar a escrever o mesmo hoje, mas notando porventura uma solidão ainda mais aflitiva apesar das selfies e dos conselhos – que por regra ignora – da entourage de Belém. |
Marcelo é acima de tudo um solitário, e como solitário que é necessita da popularidade emocional das estrelas de televisão, como notou Miguel Pinheiro na sua crónica Sete anos de TV Marcelo. Sendo que como alguém que se alimenta desse ópio só pode temer o dia em que, em vez de ter 30 microfones à volta para escutar o enésimo comentário sobre a mais banal trivialidade, só tiver pela frente o microfone onde lerá o seu discurso de despedida de Belém. Também por isso é certeiro o comentário de Rui Ramos em A lição do presidente comentador: na sua entrevista, “o Presidente da República convidou o país a ficar diante da televisão, à espera que aconteça alguma coisa, mas com o aviso de que o mais provável é não acontecer nada”. |
E não irá certamente acontecer nada, pelo menos por sua iniciativa. Aqui há uma meses, quando o país esperava e desesperava por medidas que atenuassem o impacto do inflação, disse que não sentia nas ruas um ambiente de contestação do Governo. Agora, com o país no meio de uma vaga de greves, acha que “ainda não há um clima de contestação generalizada”. Ou seja, agora como então trata de sacudir os que lhe pedem mais firmeza e mais exigência para com a governação. |
Não se iludam pois: a entrevista dos sete anos não marca qualquer ponto de inflexão nem resolve este nosso problema chamado Marcelo Rebelo de Sousa. |
(PS. Coube à Helena Matos conduzir o Contra-corrente que fizemos de reacção à entrevista, Um Presidente a contar melões, e vale a pena ouvi-la, mas desse programa não posso deixar de chamar a atenção para o depoimento de um estudante da Universidade do Porto, residente em Famalicão, José Caetano, um testemunho que é um soco no estômago. É a partir do minuto 31:35.) |
O populismo de esquerda também é perigoso (mais perigoso?) para a democracia |
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“Populistas são políticos populares que defendem políticas de que eu não gosto”. Não sei se esta é a melhor definição de populismo, mas é certamente uma definição que ajuda a ultrapassar a indefinição ideológica do populismo. De facto, se na Europa e nos Estados Unidos tendemos a associar mais depressa o populismo a partidos de direita, por vezes extrema-direita, na América Latina há populismos para todos os gostos, porventura até com mais inclinações de esquerda. |
Numa altura em que alguns dos que dizem preocupar-se muito com as ameaças à democracia só vêem riscos reais nos populismos de direita, uma visita ao México pode ser instrutiva. É que se populistas de direita como Trump e Bolsonaro ganharam eleições, e depois as perderam e acabaram por sair do poder (com mais ou menos resistência mas saíram), há na América Latina vários casos de populistas de esquerda que, uma vez instalados no poder, destroem a democracia – não retoricamente, mas na prática – por forma a nunca mais serem arredados do governo. Todos conhecem o caso da Venezuela, menos estarão a par da ditadura familiar que se instalou na Nicarágua, e naturalmente já ninguém fala de Cuba. |
Ao lado destes países o México é um gigante – só o Brasil é maior na América Latina – e no México, depois de 71 anos de hegemonia do PRI, Partido Revolucionário Institucional, há mais de 20 anos que se vinha enraizando uma democracia com instituições sólidas e checks and balances. Acontece porém que a vitória nas últimas eleições presidenciais de um populista de esquerda, Andrés Manuel López Obrador, desequilibrou o regime já que, como escreve Anne Applebaum na The Atlantic, “Mexico’s president is destroying democracy from the inside”. Em How Do You Stop Lawmakers From Destroying the Law? Applebaum explica as consequências da mais recente iniciativa de López Obrador, a sabotagem do organismo que organiza as eleições: “Americans don’t have a national electoral body, but imagine the outcry if even the governor of Texas or California suddenly proposed drastic cuts to their state’s elections budget a year before an important vote—cuts that could jeopardize the results.” |
O tema também preocupou o Financial Times, tendo sido o escolhido por Gideon Racham para o seu podcast (The Racham Review) desta semana, Is Mexico slipping into autocracy? Trata-se de uma conversa com a cientista política Denise Dresser, alguém que até votou por este presidente mas agora está mais do que desiludida, está revoltada, pois vê regressar os tempos da arbitrariedade (a transcrição dessa entrevista pode ser lida aqui e uma coisa que nela se revela é como funciona um regime em que os militares têm cada vez mais influência e poder e onde o presidente dá diariamente uma conferência de imprensa de duas horas para atacar todos os que o criticam). |
Sobre o México vale ainda a pena ler Fareed Zakaria no Washington Post – Mexico’s populist demagogue president is gutting fair elections –, a entrevista que Anne Applebaum deu a uma revista mexicana, Letras Libres, depois de ter participado, na Cidade do México, numa manifestação pela democracia (na foto), AMLO y la subversión de la democracia, e ainda um trabalho do New York Times sobre a forma de actuação dos militares, nomeadamente ao espiar adversários políticos, Spying by Mexico’s Armed Forces Brings Fears of a ‘Military State’. Como o jornal escreve, “This is the first time a paper trail has emerged to prove definitively that the Mexican military spied on citizens who were trying to expose its misdeeds.” |
Do que precisamos para uma boa educação? |
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Em 1987 o escritor Saul Bellow (Nobel da Literatura de 1976) convenceu o seu amigo e colega na Universidade de Chicago, Allan Bloom, um professor de Filosofia, a desenvolver e transformar em livro a crítica que tinha escrito ao sistema de ensino nos Estados Unidos para a National Review. O livro, que se pensou ir ter uma pequena circulação, transformou-se num imediato best-seller, apesar do seu conteúdo por vezes académico. Nos últimos 35 anos tornou-se mesmo impossível discutir o que se passa nos campus universitários dos Estados Unidos sem referir The Closing of the American Mind: How Higher Education Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today’s Students. |
Não podia por isso ser mais oportuna a sua edição em português, pela Guerra e Paz, numa colecção onde também já saíram outras obras importantes, mas ainda inéditas em Portugal, de figuras como Friedrich A. Hayek, Isaiah Berlin e Hugg Trevor-Ropper. A Destruição do Espírito Americano – Ou como o ensino superior defraudou a democracia e empobreceu o espírito dos alunos de hoje chega muitos anos depois do seu lançamento mas chega numa altura em que muito do que Allan Bloom escreveu e que na altura foi visto como sendo demasiado pessimista se tem vindo a revelar como porventura até optimista, tal o grau de sectarismo que hoje reina nos campus mesmo das maiores e mais prestigiadas universidades dos Estados Unidos. Como se escreve no Posfácio, “a universidade que hoje vivemos continua a ser aquela que ele descreveu, só que é ainda mais assim”. |
Bloom atribui muita da responsabilidade pelo fechamento dos espíritos dos estudantes americanos à pouca atenção que é dada aos clássicos da literatura e do pensamento ocidentais, de Homero a Platão, de Shakespeare a Maquiavel, de Rousseau a Locke ou Tolstoy. Já não se aprendia a escrever ou a pensar lendo o que de melhor que a nossa tradição produziu, antes tendo aulas de escrita sobre o último êxito de Hollywood ou sobre teoria queer. |
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O texto de Bloom é por isso um poderoso incentivo para regressarmos – aqui como nos Estados Unidos – aos Grandes Livros, e por isso não posso deixar de recomendar a obra de um outro Bloom, Harold Bloom (não há nenhum parentesco entre os dois), O Cânone Ocidental: os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempos, assim como The Great Books: A Journey through 2,500 Years of the West’s Classic Literature, de Antonhy O’Hear, director do Royal Institute of Philosophy de Londres e visita regular a Portugal e às conferências do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Numa das suas vindas a Lisboa proferiu mesmo uma notável palestra, A Tradição Ocidental da Liberdade e as suas Raízes Clássicas e Cristãs nos Grandes Livros, onde faz a ligação entre alguns grandes livros e algumas das grandes obras da pintura renascentista, uma associação que Allan Bloom também estimulava os seus alunos a fazerem ao ponto de um deles uma vez lhe ter dito que as suas aulas eram o melhor guia para uma viagem a Itália. |
Admito que alguns leitores já estejam a pensar que se os mais novos já não são sequer susceptíveis de se interessar pela leitura de Anna Karenina, mais dificilmente se atreverão a iniciar-se nos clássicos gregos. Puro engano, tudo depende de como essa leitura lhes é revelada, e desse ponto de vista a experiência de Miguel Monjardino com os jovens do Ensino Secundário da sua ilha Terceira, nos Açores, é absolutamente lapidar. Lê com eles desde Homero a Tucídides, e o resultado é entusiasmante, como o próprio descreveu num artigo no City Journal de Nova Iorque, “A Republic in the Atlantic”. |
(PS. Quem tiver dúvidas sobre o delírio a que já se chegou nalguns sistemas de ensino deve ler o último texto do biólogo Richard Dawkins na Spectator, Why I’m sticking up for science. Ele acaba de regressar da Nova Zelândia, o “paraíso” da darling da esquerda mundial Jacinda Ardern, onde descobriu que esta senhora tinha promovido uma mudança dos currículos escolares para colocar no mesmo nível o ensino da ciência “ocidental” e das crendices maoris. Como ele escreve, “The very phrase ‘western’ science buys into the ‘relativist’ notion that evolution and big bang cosmology are just the origin myth of white western men, a narrative whose hegemony over ‘indigenous’ alternatives stems from nothing better than political power. This is pernicious nonsense. Science belongs to all humanity. It is humanity’s proud best shot at discovering the truth about the real world.” O disparate começa a não ter limites.) |
Estou viciado em podcasts. E agora ainda há “O sargento da Cela 7” |
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Os leitores desta newsletter já se terão dado conta que eu refiro cada vez mais podcasts, do Observador e não só. Hoje, por exemplo, já lhes recomendei um pouco mais acima um do Financial Times. Agora vou recomendar-lhes outro, ou outros, pois serão seis. Trata-se do primeiro Podcast Plus do Observador, chama-se “O sargento da Cela 7”, já está disponível o trailer e o lançamento do primeiro episódio é esta terça-feira. Este sábado, enquanto passeava com os meus cães – um longo passeio de mais de três horas – estive a ouvir os três primeiros episódios (privilégios de publisher) e confirmei que se trata de um enorme salto em frente no mundo dos podcasts em Portugal. A história é fascinante – fala-nos de António Lobato, um piloto-aviador português abatido na Guiné e que depois estaria sete anos e meio preso até que uma operação secreta o resgatou –, a forma como ela é contada é envolvente. Só vos posso dizer que fiquei ansioso por ouvir os outros três episódios, pois é como uma novela que, mal começamos a descobrir, só desejamos saber o que acontece a seguir. |
Como inspiração para o fim-de-semana partilho convosco uma fotografia que tirei durante esse meu passeio deste sábado – os meus passeios são também ideais para ouvir podcasts, que me fazem muita companhia –, uma imagem tirada sensivelmente no mesmo local de outro do Verão passado e que eu já vos tinha mostrado. |
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Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |