Para percebermos o que se passa, o que não acontece é, por vezes, tão importante como o que acontece. E uma das coisas que não aconteceu, na última semana, foi qualquer escândalo ou surpresa com o relato que um semanário publicou da reunião do Presidente da República com os seus assessores. Foi quase uma acta, que serviu para divulgar uma espécie de antologia de chistes do Presidente sobre a vida política portuguesa, incluindo sobre o ex-Primeiro Ministro Pedro Passos Coelho. Saiu na primeira página do jornal. Num país onde as instituições funcionassem regularmente, não se teria falado de outra coisa, e talvez houvesse um inquérito em curso. Quem passou a informação ao jornal? O Presidente disse mesmo aquilo? Mas não. Ninguém se escandalizou, ninguém se surpreendeu. Foi como se não tivesse acontecido.

Querem que diga mais? Quantos não terão pensado que a fonte de Belém foi o próprio Presidente? E quantos, tendo suspeitado ou até dado isso como adquirido, terão encolhido os ombros: é assim que as coisas são, nada a fazer. O Presidente comenta todos os casos do dia, todos os dias, e quando não comenta, como sucedeu em relação a um par de assuntos desta semana, é porque está a reservar os temas para uma entrevista. O Presidente foi comentador televisivo antes de ser eleito, e entendeu o seu mandato presidencial como a continuação do comentário televisivo por outros meios. E isso não quer apenas dizer que tem de falar de tudo. Quer dizer, também, que tem de falar de uma certa maneira.

O que define essa maneira? Duas coisas: em primeiro lugar, não pode parecer que toma partido; em segundo lugar, tem de entreter. Era assim que o Presidente era enquanto comentador. É assim que é como Presidente. Viu-se ontem na entrevista à RTP. Se alguém a tivesse ouvido sem saber que o entrevistado era Presidente da República, não teria adivinhado, a não ser pela decoração palaciana, antes de ele começar a discorrer sobre o seu “poder de dissolução”.

Na ressaca da entrevista, o PSD tentou agarrar-se à qualificação da maioria como “requentada”, esquecendo que o Presidente rebaixou o PSD ao nível da IL e do Chega. Houve também uns jornalistas muito excitados com a possibilidade de o PRR servir de pretexto de dissolução, como o orçamento em 2021, sem o terem ouvido dizer que “não há condições para isso”. O porta-voz do PS pôde assim constatar, com agrado, que o presidente fez “uma análise bastante equilibrada”. De facto, a análise foi outra coisa. No caso da habitação, o Presidente falou das propostas do Governo e do PSD (a que chamou “dois melões”) e demonstrou a irrelevância de ambas: o Estado não terá meios para realizar nenhuma delas. A política portuguesa, do ponto de vista do Presidente, é um conjunto de caprichos ideológicos temperados pela impotência colectiva. O comentador presidencial insinuou assim que o povo nunca poderá ser mais do que uma simples audiência de televisão, porque não há meios de acção política, e nem o governo, nem a oposição, nem ele próprio têm força para nada. A única coisa que nos resta é, enquanto espectadores, continuarmos no sofá a ver TV. Talvez aconteça alguma coisa. Mas o mais certo é não acontecer nada. Eis a lição do presidente comentador.

A imprensa, recorrendo ao palavreado empresarial que passa por análise política, louvava ontem o Presidente pela “gestão do regime”. É a “gestão do regime” num país em divergência da UE, e onde a escola pública, entre confinamentos e greves, deixou de funcionar. Não, o Presidente não é a causa nem o maior responsável. Pode até ser que não seja a solução. Mas é certamente parte do problema.

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