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Portugal tem um Governo mas às vezes parece que não tem, pois só se ocupa das crises que criou, como as da TAP. Mas como entretanto os portugueses trabalham e a economia cresce, não será melhor assim? |
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Peguemos em algumas notícias dos últimos dias. Como a de que um quinto dos senhorios saiu do mercado depois de pacote da habitação do Governo ter sido anunciado. Ou que mesmo com os constrangimentos no aeroporto de Lisboa e os limites ao alojamento local, no primeiro trimestre as dormidas turísticas em Portugal aumentaram 40,9%, e +51,6% nos não residentes, o que significa que ficaram já bem acima de 2019, o último ano antes da pandemia. É um resultado, a par com um aumento significativo das exportações, que certamente contribuiu para um crescimento mais elevado do que o esperado no primeiro trimestre (2,5% em termos homólogos e 1,6% em cadeia). O ano passado, agora que já se podem fazer contas, as contas feitas pelo Conselho de Finanças Públicas revelam que 96% do “brilharete” orçamental de Medina em 2022 caiu-lhe no colo pois as suas políticas apenas reduziram o défice em 0,1 pontos percentuais – o resto foi a economia e os juros. Entretanto, em 2022, as receitas com o IRS engrossaram 549 milhões de euros com a não atualização dos escalões em linha com a inflação, o que contribuiu para um aumento da carga fiscal para 36,2% do PIB, um novo máximo histórico. |
Este conjunto de notícias – e podia ter seleccionado mais – parecem apontar sempre no mesmo sentido: aquilo que corre melhor em Portugal neste momento (a economia) acontece apesar do Governo, aquilo que corre pior (a falta de habitação, a TAP) é muito função daquilo que o governo tem feito, mesmo estando nós com uma governação disfuncional e muito pouco efectiva – basta pensarmos, regressando às contas do Conselho de Finanças Públicas e à “jóia da Coroa” desta governação, o PRR, que em 2022 76% do investimento público de 2022 ficou por executar. Isto significou que mesmo com tanto dinheiro da Europa o investimento público, em termos líquidos, continuou a ser negativo, isto é, continuou a não compensar o desgaste das infraestruturas, edifícios, máquinas e equipamentos das nossas administrações públicas, algo que já acontece há mais de uma década. |
Sendo assim, será que Luís-Aguiar Conraria não tem mesmo razão quando defende que “uma economia funcional não precisa de um Governo para laborar, como os belgas não se cansam de demonstrar”? Ou seja, que mesmo se continuarmos com o governo disfuncional que temos “as empresas continuarão a produzir, as pessoas a trabalhar, os empresários a investir, os estudantes a estudar, os ladrões a roubar e os polícias a persegui-los”, logo a economia continuará a crescer? |
Há de facto muito a ideia – errada, erradíssima – que tudo o que acontece de bom ou de mau na economia, e por consequência em boa parte das nossas vidas, é consequência da acção dos governos. As mais das vezes não é. É mais consequência da inação dos governos, pois não faltam os exemplos de como os governos muitas vezes desajudam. |
Tomemos um exemplo concreto: a inflação. Não restarão muitas dúvidas que a subida dos preços a que assistimos no ano passado aconteceu por motivos que escapam por completo, ou quase, ao que o nosso governo pudesse fazer. A subida dos preços da energia já tinha começado antes da guerra da Ucrânia e disparou depois. O custo dos bens alimentares sofreu com essa mesma guerra, com problemas nas cadeias logísticas e com um mau ano agrícola. Por fim existir muito dinheiro a circular quando havia escassez na oferta foi sobretudo fruto das políticas dos bancos centrais de injectarem liquidez nos mercados por causa das crises da dívida (primeiro) e da pandemia (depois). |
O nosso governo não contribuiu, a não ser muito marginalmente, para qualquer destas circunstâncias que justificaram a inflação. Mas não deixou de cometer erros, o primeiro ter procurado negar a realidade e andado meses a dizer que a inflação era apenas um fenómeno de curta duração, mais recentemente ter decidido um pacote “anti-inflação” cheio de medidas erradas (como o IVA zero) numa altura em que os preços já estavam, e estão, a crescer mais devagar. Ou seja, a gastar dinheiro sem necessidade, melhor, sem outra necessidade que não a de tentar inverter sondagens desfavoráveis, como já defendi em anterior newsletter. |
O que me leva a ter de chamar a atenção para um texto de Filipe Santos, actual Dean da CATÓLICA-LISBON (a Faculdade de Economia de Lisboa da Universidade Católica), Estamos a perder a oportunidade do século. Faço-o porque o seu discurso vai completamente ao arrepio do que é feito pelos partidos políticos, mesmo os mais liberais, já que defende que “o Governo tem ao longo desta legislatura uma oportunidade extraordinária e irrepetível de colocar a dívida pública num patamar de sustentabilidade perto dos 80% do PIB, valor anterior à crise financeira de 2008, sem obrigar os Portugueses a grandes sacrifícios”. Para isso bastaria que aproveitasse a boleia da inflação e não começasse a desbaratar dinheiro, como começou a fazer no final de 2022 e continuou em 2023 com aumentos mais generosos para a função pública e subsídios a todos, mesmo aos mais desafogados, com a redução do IVA, isto para além do que fez agora com as pensões, criando compromissos permanentes. Em vez de o Governo seguir esse caminho – e sabemos como as oposições têm pedido ainda mais subsídios ao executivo –, o que Filipe Santos defende é que se faça “da ‘disciplina das contas certas’, não uma ofensa política, mas sim um desígnio nacional, neste período favorável de benesse orçamental que não se repetirá”. |
Todos os que têm consciência de que as dívidas, quaisquer dívidas, familiares, empresariais, do Estado, representam sempre menos liberdade, os que não se esquecem de como dívidas públicas elevadas se traduzem sempre em menos soberania, deviam seguir este conselho. Mais: já que a economia até vai funcionando e a inflação até já começou a descer, devíamos mesmo desejar que este governo disfuncional ainda se torne mais disfuncional pois até já vimos que quando actua (quando anuncia que vai “resolver” o problema da habitação, quando trata de “salvar” a TAP gastando 3.2 mil milhões de euros) as coisas ainda ficam piores. |
Há alturas em que ter um governo que não funciona, como o que temos, pode ser bem melhor do que ter um governo a estragar o que já tem pouco concerto. |
As eleições mais importantes de 2023? |
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As eleições turcas que decorrem hoje são – nisso parece haver consenso – as mais importantes do ano. Erdogan está no poder há 20 anos e há sinais evidentes de degradação da democracia e de deriva autoritária. Mas desta vez pode perder, pelo que se receia que não aceite uma derrota. Isso mesmo se analisa num especial do Observador – Erdoğan enfrenta as eleições mais desafiantes da sua vida política e a oposição sonha com vitória. “Caos” no day after? – assim como em dois podcast deste última semana. Em Porque são tão importantes as eleições turcas?, Ricardo Conceição conversou para “A História do Dia” com José Duarte Ribeiro, um sociólogo português que vive e trabalha em Ancara e na sua conversa explica-se quem são os adversários de Erdogan e porque é que podem ganhar. Já em Turquia: as eleições que Erdogan pode perder eu próprio conduzi mais um “Conversas à Quinta” com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto onde, para além de comentarmos a actualidade, tratámos de enquadrá-la na história de uma Turquia moderna que este ano comemora 100 anos e nos jogos geopolíticos daquilo que já se designa por “neo-otomanismo”. |
E se por essa Europa fora o regime de Erdogan até pode ter agradado a certos oportunismos – como se relata nesta peça do Politico Europa, Why the EU loves Erdoğan –, a verdade é que a The Economist se manteve fiel à sua tradição de tomar partido na véspera de eleições importantes, pelo que escreveu um editorial em que, depois de considerar estarmos perante “The most important election this year”, se defende que If Turkey sacks its strongman, democrats everywhere should take heart. O argumento da revista é assim sustentado: |
“More important than any of this is the signal an opposition victory would send to democrats everywhere. Globally, more and more would-be autocrats are subverting democracy without quite abolishing it, by chipping away at rules and institutions that curb their power. Fifty-six countries now qualify as “electoral autocracies” |
Finalmente, Jorge Almeida Fernandes retoma no Público a ideia de que estão são As eleições mais importantes de 2023. Há contudo no seu texto uma passagem onde ele vai um pouco para além do debate sobre a Turquia para tentar colocar esta eleição no quadro mais geral dos conflitos contemporâneos. Deixo-vos aqui uma citação, talvez um pouco longa: |
O historiador Christopher Clark (…) dá-nos um conselho a propósito da Turquia e dos conflitos do Oriente: não façam comparações com o século XX, pensem antes no século XIX. Ressurgem antigas rivalidades. Poderíamos dar muitos exemplos. “A Rússia regressou ao papel do seu pré-século XX”. Egípcios e turcos disputam o futuro da Líbia, vêem-se os desastrosos efeitos da intervenção na Síria, abre-se o conflito sobre as exportações de cereais pelos portos do Mar Negro, enquanto Erdogan usa uma linguagem e gestos neo-otomanos. “A actual guerra na Ucrânia pouco tem a ver com as oposições binárias do século XX e muito com a funda História das guerras de anexações ao longo da periferia imperial russa, uma História que se desenrolou antes e durante o século XIX.” A “modernidade” do século XX está a esvair-se. |
Como verão a seguir, eu aproveitei o conselho. |
Num país cheio de história, a memória das guerras passadas |
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Esta ideia de que talvez possamos encontrar na história e nas guerras do século XIX mais paralelismos com os dias que vivemos – e mais chaves para os explicar – do que olhando para os conflitos do século XX levou-me a regressar a um livro que li há uma dúzia de anos e com um título que diz tudo: Crimea, The Last Crusade, de Orlando Figes (não há, infelizmente, edição portuguesa). Figes é um historiador que aprecio bastante, que já entrevistei para o Observador quando saiu em Portugal o seu livro sobre a revolução russa, “A Tragédia de um Povo”, e que nesta obra sobre uma guerra bastante esquecida do século XIX nos traça um retrato muito completo não apenas das operações militares, mas de tudo o que ela significou e ainda significa. |
Esta semana vimos como a memória da II Guerra Mundial (ou da Grande Guerra Patriótica, como lhe chamam os russos) ainda é central na forma como a Rússia se vê a si mesma, e como Putin quer que a vejamos, mas a memória dessa guerra não é a única que povoa o imaginário nacional. Conta-se que Lavrov, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, terá um dia comentado que o presidente russo só ouvia dois conselheiros, Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande, um comentário cheio de significado se pensarmos que o primeiro travou em Poltava (que fica hoje na Ucrânia) a batalha decisiva contra a então todo-poderosa Suécia, e que foi a segunda que conquistou a Crimeia e fundou cidades como Kherson e Odessa. Depois dessas guerras imperiais há outras que estão sempre a ser lembradas – a invasão napoleónica, a guerra com o Japão no início do século XX, a I Guerra e a queda do czarismo, a guerra civil que se seguiu, naturalmente a II Guerra e ainda a guerra do Afeganistão. No meio de tantos conflitos habitualmente recorda-se como os do século XX, quando representaram derrotas, criaram crises do regime (revoluções de 1905 e 1917, fim da URSS em 1991), mas poucas vezes se refere a derrota na Crimeia em 1856, que não teve o mesmo tipo de consequências. É por isso muito curioso recordar o que Orlando Figes escreveu neste seu livro em… 2010: |
“For the British and the French, this was a crusade for the defence of liberty and European civilization against the barbaric and despotic menace of Russia, whose aggressive expansionism represented a real threat, not just to the West but to the whole of Christendom. As for the Tsar, Nicholas I, the man more than anyone responsible for the Crimean War, he was partly driven by inflated pride and arrogance, a result of having been tsar for twenty-seven years, partly by his sense of how a great power such as Russia should behave towards its weaker neighbours, and partly by a gross miscalculation about how the other powers would respond to his actions; but above all he believed that he was fighting a religious war, a crusade, to fulfil Russia’s mission to defend the Christians of the Ottoman Empire. ” |
Ao ler estas palavras não pude deixar de pensar até que ponto a actual guerra, que pode chegar de novo à Crimeia, não se aproxima em muitos dos seus elementos mais do que se passou no século XIX do que daquilo que nos recordamos ter sido o século XX. |
Ainda a propósito das eleições turcas |
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Queria regressar ao tema da Turquia e das eleições deste domingo a propósito desta fotografia, que tirei há uma dúzia de anos quando passei férias na Turquia, parte das quais num pequeno barco que nos levou a conhecer as antigas colónias gregas da costa ocidental da Anatólia. Foi uma viagem que começou na terra onde nasceu o primeiro dos historiadores, Heródoto, a antiga Halicarnasso (hoje Bodrum), e terminou em Éfeso, onde se pensa que pode ter sido escrito o Evangelho de São João (é de Éfeso a imagem abaixo), passando por Mileto, a cidade onde existiu a mais antiga escola de filosofia da tradição ocidental. Foi uma viagem pela costa da Turquia toda ela dedicada à herança grega e jónia, o que talvez surpreenda os que associam a Grécia antiga apenas ao território da Grécia dos nossos dias. A meio dessa viagem tivemos de alterar os planos, porque uma parte da região estava interditada uma vez que o exército turco estava a realizar um exercício de desembarque anfíbio, mas o que mais me surpreendeu foi deparar-me, numa das aldeias em cujo porto pernoitámos, com uma festa que incluía música e desfile pelas ruas e aquilo que parecia ir ser um pequeno arraial nacionalista (é desse recinto a imagem), tudo porque um mancebo da terra acabava de ser chamado para cumprir serviço militar. Se nesse tempo era impossível viajar na Turquia sem estar sempre a tropeçar em imagens do “pai da pátria”, Mustafa Kemal Atatürk (não sei se ainda é assim), não me deixou de espantar aquele fervor nacionalista, e militarista, numa pequena e remota aldeia. Às vezes é nestes pormenores que notamos como outros países e outras realidades são diferentes daquelas a que estamos mais habituados nesta velha e ocidental nação europeia. |
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Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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