Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui e fazer aqui a sua assinatura para assegurar que recebe as próximas edições. |
Regresso ao tema dos professores, com uma “proposta modesta” para acabar com o actual modelo hipercentralizado e estatista responsável quer pelo descontentamento dos professores, quer pela degradação da qualidade da escola pública, e ainda recordações da batalha de Estalinegrado e uma sugestão para quem gosta de passear, ou fazer trekking, ou andar de bicicleta. |
|
A crise dos professores prolonga-se sem fim à vista. Mesmo com “serviços mínimos” a greve está para durar e não se vê como boa parte das reivindicações que se ouvem cada vez que se põe um microfone à frente de um professor cheguem sequer à mesa das negociações – nomeadamente os famosos “6 anos, 6 meses e 23 dias”. O ministro das Finanças já fechou a porta. |
Procurei explicar, em anterior newsletter, o porquê da revolta dos professores, tentando pesar as razões do seu imenso mal estar. Passaram mais três semanas e como o impasse continua quero hoje retomar aqui uma proposta “contra-corrente” que fiz esta semana precisamente num Contra-corrente da Rádio Observador. |
A minha proposta parte de uma constatação: é e será sempre impossível gerir sem conflitos e sem mal-estar uma mega-empresa como é o Ministério da Educação, uma empresa com centenas ou milhares de locais de trabalho, que são as escolas, mas onde quase tudo é determinado a nível central. É a nível central que se decide em que escola são colocados os professores, é a nível central que se estabelecem as regras salariais e é a nível central que se organiza a chamada “carreira docente”. Enquanto for assim o potencial de conflito é infinito, haverá sempre injustiças gritantes e problemas que nunca serão resolvidos. Mais: a qualidade da escola pública continuará a degradar-se e a percentagem das famílias que foge para o sistema privado continuará a aumentar, como hoje já sucede. |
Tudo neste edifício hipercentralizado está errado, desde a ideia de que o acesso de todos a uma educação de qualidade só pode ser garantido por escolas estatais até à lógica de que tudo deve ser organizado da mesma forma do Minho ao Corvo, da escola do bairro rico à escola do bairro onde quase só vivem imigrantes. |
Este sistema hipercentralizado criou vários nós cegos que potenciam os conflitos e que são muito difíceis de desatar, que porventura nunca serão desatados enquanto mantivermos este modelo. |
É absurdo o actual sistema de colocação de professores, determinado por uma “lista ordenada” onde o que conta são coisas como a nota da licenciatura (e sabemos como elas podem variar de escola de ensino superior para escola de ensino superior) e onde não se tem a mínima consideração pela integração dos candidatos no que deviam ser, escola a escola, projectos educativos diferenciados em função de realidades diferenciadas. |
É também absurda a forma como está organizada a carreira docente, que também depende de um modelo centralizado. O princípio básico dessa carreira é a antiguidade – vão-se acumulando anos como professor para conseguir passar aos escalões seguintes. É um princípio que implodiu quando se percebeu que não havia nem haveria dinheiro para pagar a professores que, paulatinamente, iam subindo de escalão com base nos anos de serviço (e na frequência de umas formações às vezes bem manhosas) e praticamente não tendo em consideração o seu desempenho como professores. |
A lógica deste sistema é que a carreira dos professores é, como se diz, “horizontal”, isto é, não se progride assumindo mais responsabilidades, progride-se com base na ideia de que a experiência vai melhorando a qualidade do ensino – o que pode ser verdade mas, sobretudo a partir de certos escalões, também pode ser mentira. |
Para travar esta progressão sem limites foi introduzido o princípio da avaliação dos professores, e com ele veio a primeira grande revolta dos professores. Foi em 2008 e nunca, desde essa altura, se conseguiu consensualizar um modelo de avaliação aceite por todos, ou mesmo aceite pela maioria. Devo dizer que a primeira vez que me debrucei sobre o detalhe do modelo proposto em 2008 o achei absolutamente despropositado, kafkiano mesmo. |
Hoje a discórdia centra-se mais no sistema de quotas, um sistema que tem um problema difícil de ultrapassar neste sistema hipercentralizado: a avaliação é feita por escola ou por agrupamento escolar, mas depois essa avaliação é considerada a nível nacional para a progressão na carreira. Isto significa que se numa escola se concentrarem muitos bons professores, esses professores vão ser prejudicados nas suas carreiras relativamente a professores menos bons, ou mesmo medíocres, mas que estão colocados em escolas onde quem tem um olho é rei. |
Temos assim um sistema que ou gera injustiças relativas ou, na ausência de avaliação, permite que mesmo professores menos bons cheguem ao topo da carreira. Não há solução para este dilema com a actual rigidez monolítica do Ministério da Educação, naturalmente muito do agrado dos sindicatos, que assim só têm de lidar com um “patrão”. A minha “proposta modesta”, digamos assim, parte por isso da necessidade de desfazer este edifício hipercentralizado e recolar o foco onde ele deve estar, que é nas escolas, nos alunos, já agora também na realização profissional dos professores. |
Isto implicaria construir todo um outro modelo de escola pública – ou, para ser mais exacto, todo um outro modelo de serviço público de educação –, mas isso só pode ser feito de forma gradual, e também só deve ser feito experimentando soluções diferentes para ver as que funcionam melhor e, ao mesmo tempo, para ir ganhando progressivamente a confiança dos professores. |
Se calhar precisaríamos de uma geração para fazer estas mudanças, seguramente necessitaríamos de várias legislaturas, pelo que já é tarde para começar. |
O princípio geral é que caberia ao Estado garantir o acesso de todos a um ensino de qualidade, mas isso não teria de corresponder, bem pelo contrário, à existência de uma rede universal de escolas estatais (ou públicas, como gostam de chamar-lhes). |
Garantindo e Estado o acesso universal, poderiam e deveriam coexistir vários modelos de escola – escolas geridas directamente pelo Estado, escolas onde as autarquias locais tivessem mais responsabilidade, também escolas que pudessem passar a ser geridas por cooperativas de professores, naturalmente que mais escolas com contratos de associação, escolas PPP e naturalmente todas as escolas privadas, ou melhor, as escolas privadas que tivessem procura. |
Ao mesmo tempo as famílias, os pais, deveriam ter mais liberdade e mais responsabilidade na escolha da escola dos seus filhos e o financiamento das escolas devia acompanhar os alunos, não ser determinado pelas despesas fixas das escolas existentes. |
A avaliação, em vez de seguir os moldes actuais, muito baseada no cumprimento de toda aquela burocracia de que os professores se queixam, passaria a ter em atenção sobretudo os resultados, ou seja, sobretudo aquilo que os professores tivessem conseguido fazer com os seus alunos (aqui reside precisamente um dos problemas actuais, pois este Ministério destruiu todo o edifício da avaliação, acabou com quase todos os exames, desvalorizou os restantes, e isso torna mais difícil perceber se um professor faz progredir ou regredir, em termos comparativos, os alunos que ensina). |
Nenhuma componente desta “proposta modesta” se afasta de soluções que já foram adoptadas pela maioria dos países mais desenvolvidos e nada teria de ser feito nem de repente, nem de forma monolítica, sendo naturalmente necessário um período de transição, até para assegurar aos professores que já estão no sistema que as suas expectativas de carreira são minimamente realizadas. Para isso seria necessário recriar um clima de confiança que hoje está irremediavelmente comprometido e assumir que nenhum modelo é fechado, que se pode avançar primeiro com projectos-piloto, que se admite o método da tentativa e erro, que são melhores ajustes graduais do que rupturas radicais. |
As escolas hoje parecem estar pensadas para servir o Ministério e agradar aos seus burocratas. No futura as escolas teriam de ir antes ao encontro das necessidades locais, envolver as comunidades e, sem deixarem de ter metas de aprendizagem para cumprir (os exames nacionais seriam naturalmente reintroduzidos), teriam ao mesmo tempo muito mais autonomia para proporem projectos educativos diferenciados. |
O que hoje temos não serve: o sistema educativo português é dos que mais perpetua as desigualdades sociais (dados da OCDE), o que significa que não funciona como elevador social nem garante a igualdade de oportunidades; ao mesmo tempo sai caro aos contribuintes e não evita que todos estejam descontentes e e se sintam espoliados. |
Sem mudarmos de paradigma não desfazeremos estes nós cegos. |
A ler, ainda sobre a greve dos professores (e não só) |
|
Não quero maçar-vos muito mais com este tema dos professores, apenas deixar algumas referências de textos que valem a pena ser lidos. |
- Primeiro que tudo, Alexandre Homem Cristo, que escreve às quintas-feiras no Observador e é o colunista que mais gosto de ler sobre temas de educação. O seu texto mais recente é sobre Os estilhaços das greves dos professores e nele sublinha um tema fundamental: “Estas greves aprofundarão os desafios educativos do país. Porque estão a agravar os danos na aprendizagem. E porque pedem mais centralismo, quando o que se precisa é de mais liberdade e autonomia.” Ainda sobre esta vaga de protestos ele também defendeu, há umas semanas, que Os sindicatos não têm razão, mas ganharam: “Eis um recuo estrondoso do governo na contratação de professores. E eis o país perante um bloqueio: se nem com uma maioria absoluta há coragem para enfrentar o imobilismo sindical, estamos tramados”.
- Posição diferente, mas não tão diferente como o título pode sugerir, foi a de Henrique Monteiro, no Expresso, em Por que têm razão os professores?. O seu argumento é que “Ainda que os dirigentes sindicais possam ter posições erradas, os professores têm, no essencial, razão em estar descontentes. Ainda que as greves fossem parecidas com os coletes amarelos de França, como agora também é muito falsamente sugerido, teriam razão. O direito à indignação é algo que os professores devem ter. Há mais de 20 anos que lhes andam a retirar a dignidade.”
- Também no Expresso chamo a atenção para um trabalho de Isabel Leira sobre quanto custa devolver 6 anos, 6 meses e 23 dias de tempo de serviço. O ministro das Finanças falou em €331 milhões por ano, mas as contas são mais difíceis de fazer, como ela detalha, recordando nomeadamente um estudo da UTAO de 2019.
- Não propriamente sobre este movimento grevista, mas sobre um tema que voltou a ser discutido esta semana até por se saber que há divergências no Governo entre o ministro da Educação e a ministra do Ensino Superior, Susana Peralta pediu no Público que Não matem os exames nacionais. Eis um dos seus argumentos: “É evidente que os exames nacionais refletem as desigualdades do sistema de ensino. Só que essa é uma excelente razão para os mantermos e não para os abandonarmos.”
|
Nunca tantos morreram numa só batalha |
|
Assinalou-se esta semana o 80º aniversário do fim da batalha de Estalinegrado – e a efeméride não deve ficar por conta de Vladimir Putin nem ser apropriada pelos saudosistas da União Soviética. Não temos de achar normal que na actual Volvogrado – antiga Tsaritsyn até 1925, depois Estalinegrado e a seguir rebaptizada com o nome actual depois da morte do ditador – tenha celebrado a data descerrando um busto de Estaline ou organizando um desfile com fardamentos da época onde se incluíram os do NKVD, a temível polícia política responsável por perseguições inomináveis. |
Sem dúvida que Estalinegrado foi uma das batalhas decisivas da II Guerra, também a mais sangrenta (um milhão e meio de mortos), mas convém recordar tudo o que ela significou e para isso recomendo hoje dois livros e três podcast. |
Começando pelos podcast, sugiro primeiro um cá da casa, a edição de 24 de Agosto de E o Resto é História, com Rui Ramos e João Miguel Tavares, onde se assinala o começo dos combates. Já Iain MacGregor, autor de um dos mais recentes livros sobre a batalha, The Lighthouse of Stalingrad: The Hidden Truth at the Centre of WWII’s Greatest Battle, foi entrevistado em dois podcast ingleses, The Rest is History em Julho, e esta semana em Warfare. |
|
Já os dois livros que vos trago esta semana são ambos notáveis. Estalinegrado, de Antony Beevor, um renomado historiador com várias obras sobre a II Guerra, é porventura a melhor síntese disponível em português da grande batalha. Beevor, que viu um seu outro livro, A Queda de Berlim, banido na Rússia por nele também contar as atrocidades cometidas pelo Exército Vermelho, faz neste Estalinegrado um relato tão detalhado como seguro e rigoroso de como os nazis foram irremediavelmente derrotados nas margens do Volga. Estive a reler algumas passagens esta semana, nomeadamente as referentes à rendição do exército de Paulus, e não deixei de sorrir com a descrição de como Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, tentou disfarçar o gigantesco desastre militar, até por verificar que ainda hoje há quem utilize métodos semelhantes para esconder as suas derrotas. |
Já Vida e Destino, de Vassíli Grossman, um jornalista-escritor que foi repórter de guerra precisamente em Estalinegrado, é na opinião de muitos o equivalente para o século XX da grande novela de Tolstoy Guerra e Paz. Proibido durante largos anos na União Soviética, Vida e Destino parte dos cenários de guerra para construir um gigantesco (e implacável) fresco de como era a sociedade soviética nos dias de Estaline. |
A sua leitura é tão mais actual quanto Putin, como escreveu o El Mundo a propósito da cerimónia em Volvogrado e citando um jornalista russo refugiado na Finlândia, Serguei Shelin, continua a ser Putin: “En la tercera década de su reinado, cumplió su sueño secreto y está tratando de luchar y gobernar como Stalin, pero al mismo tiempo tiene a su disposición un aparato civil y militar al estilo de Brezhnev, y no posee la técnica estalinista de manipulación y terror”. Ou seja, “No quiere ser como Brezhnev, no puede ser como Stalin”. |
Para quem gosta de andar por aí |
Uma das vantagens de morar fora de Lisboa e numa zona semi-rural, além do preço das casas, é poder realizar caminhadas pela natureza sem necessidade de grandes deslocações. Nos últimos anos viciei-me neste tipo de actividade e fui testando muitas aplicações diferentes para registar o percurso, medir distâncias, calcular desníveis. Recentemente descobri uma nova que, nem sendo porventura a melhor para registar actividades mais atléticas, permite fazer pequenos vídeos onde se reconstitui, sobre mapas tridimensionais, o percurso realizado, apresentando também as fotografias que fomos fazendo. Não sou um especialista em aplicações, apenas um modesto utilizador, mas achei esta bem divertida. Chama Relive e partilho convosco o vídeo que ela gerou depois de um passeio recente, assim como uma das fotografias que tirei nesse dia num dos locais que considero mais cenográficos do alcantilado litoral que vai do Cabo da Roca até à Praia das Maçãs. O lugar, a que só se pode aceder a pé, chama-se Miradouro da Praia do Caneiro. |
|
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |