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Numa semana especialmente cheia de acontecimentos, uma Newsletter que começa com o programa “Famílias Primeiro”, continua com um tributo a Isabel II e termina com a história de uma fotografia de Boris Johnson, que esta semana deixou o cargo de primeiro-ministro. |
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A minha longa experiência como jornalista diz-me que é muitas vezes em momentos de descontração que os políticos baixam a guarda e deixam escapar desabafos que revelam a sua natureza profunda – ou as suas intenções não assumidas. Ora foi precisamente num momento de descontracção, num jantar com centenas de pessoas que terá ocorrido há quase 20 anos, que me calhou ouvir este desabafo a um António Costa que já tinha sido ministro mas ainda não fora presidente da Câmara de Lisboa: “Em Portugal só se fazem reformas com muito dinheiro”. Não sei se estou a citar as palavras exactas, mas o sentido é este, ou seja, sem dinheiro para comprar a boa vontade de funcionários ou de eleitores, em Portugal nem vale a pena tentar fazer reformas. |
Como imaginam, tenho recordado estas palavras inúmeras vezes nos últimos anos ao assistir à resistência – não encontro outro termo – de Costa a tudo o que sejam reformas. Ele até já chegou ao ponto de se manifestar contra o conceito de “reformas estruturais”, disse que até a expressão o “arrepiava”. |
O que se passou então para agora, sem aviso prévio, o governo de António Costa se preparar para propor uma reforma do nosso sistema de pensões? O que é que aconteceu para o homem que não gosta de reformas ir iniciar uma reforma precisamente quando soam sinais de alarme sobre o fim do tempo do dinheiro fácil e barato? |
A resposta é simples: o dinheiro está a acabar-se e, como um dia notou Margaret Thatcher, “o socialismo acaba quando termina o dinheiro dos outros”. Com uma pequena nuance: o dinheiro ainda não se acabou, este ano até há bastante dinheiro, por isso ainda é possível fazer um número de prestidigitação. Exactamente o que António Costa fez esta semana ao apresentar o pacote de medidas a que pomposamente chamou “Famílias Primeiro” (o PS continua muito bom na propaganda). |
Já discuti esta semana, com a Helena Matos, no Contra-corrente da Rádio Observador, não só “os logros e a propaganda” deste pacote de medidas, como depois discutimos, com a ajuda de especialistas, aquilo que considerámos ser a forma como António Costa se deixou enredar na trafulhice das pensões. Aí tratámos de explicar, sem margem para dúvidas, que a solução apresentada representa um corte efectivo das pensões a partir de 2024, um corte que, a existir uma nova fórmula de cálculo, ainda pode ser maior do que hoje se imagina. |
Tal como as coisas estão não há lugar para fugas à dura realidade: a partir de 2024 todos os pensionistas terão um corte permanente nos seus rendimentos equivalente a cerca de meio mês de pensão. Nunca os governos de Passos Coelho tentaram sequer algo tão radical. Mas, como referi atrás, percebe-se porque é que isto vai ser assim. |
Primeiro, como o governo reconhece, o dinheiro está-se a acabar. A reforma Vieira da Silva adiou o colapso do sistema público de pensões, mas não resolveu nem a sua sustentabilidade, nem a sua iniquidade intergeracional. Há quem ande a dizer isto há anos sem ser ouvido, agora que os números grossos da inflação tornam o problema mais evidente, Costa e os socialistas dão por fim ouvidos aos que antes classificaram de alarmistas. Agora até são eles que tentam ser alarmistas. |
Depois, antes de o dinheiro se acabar ainda houve, está a haver, em 2022, uma chuva de euros por causa do efeito conjugado da inflação e de um agravamento fiscal furtivo. De 2021 para 2022, só nos primeiros seis meses a cobrança fiscal aumentou 5,5 mil milhões de euros, bem acima dos 3,5 mil milhões previstos. É como um bodo aos pobres, mas em fim de festa. |
Finalmente, tendo um problema pela frente, o governo tentou o tal truque de prestidigitação: antecipou para Outubro o pagamento de uma parte do aumento devido nas pensões de 2023 e disse que com isso estava a acorrer às necessidades dos pensionistas. Do ponto de vista orçamental, usa-se em 2022 uma parte do excedente (um pouco mais de mil milhões de euros, o que custa aos cofres públicos a meia pensão a entregar em Outubro) e poupa-se sensivelmente o mesmo no orçamento de 2023, um Orçamento onde provavelmente vai ser mais difícil arredondar as contas. |
De caminho, cria-se a ilusão de que se está a dar um bónus em Outubro quando na verdade esse bónus é logo descontado em 2023 e, a partir de 2024, passa a ser o tal corte definitivo nas pensões. |
Como o truque não passou despercebido, o governo adoptou um discurso contraditório – por um lado diz que não haverá qualquer corte nas pensões, por outro diz que sem mudar a fórmula de cálculo (ou seja, sem cortar no valor real das pensões) está em causa a sustentabilidade da Segurança Social. |
É uma trapalhada que não deixará de prejudicar gravemente a discussão sobre a reforma do sistema de pensões, mas uma trapalhada inevitável se pensarmos que não vai haver dinheiro e António Costa, lá no seu íntimo, acha que sem dinheiro não se fazem reformas. |
Não só acha como pratica, e muito por causa disso não aproveitámos os anos com o vento de feição, como ainda esta semana voltou a recordar o Rui Ramos, para mudar o tinha de ser mudado na nossa economia e no nosso Estado. Como não o fizemos, empobrecemos em termos relativos. Como estamos mais pobres, temos menos dinheiro. E como continuamos e continuaremos a ter Costa, já estão a ver para onde caminhamos. |
Isabel II, 1926-2022 |
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Quando nos lembrarmos desta segunda semana de Setembro de 2022 recordaremos seguramente a tarde de dia 8, quando foi anunciada a morte da Rainha Isabel II. Nos últimos dias, quase tudo foi escrito e dito sobre aquela a que já há quem chame “Elizabeth the Great, the longest serving and in many ways the finest monarch in our history”. Fizemos também um interessante Contra-corrente sobre como será o futuro sem a sua presença tranquilizadora – Como vamos viver sem a mulher que não tinha poder? – e não creio que possa acrescentar muito mais nesta newsletter, a não ser recomendar dois dos artigos que li por estes dias e achei mais interessantes: |
- No Financial Times, um longo ensaio do historiador Simon Schama onde se defende a ideia de que Isabel II era muito mais do que a Chefe de Estado do Reino Unido, era a quintessência do ser-se britânico. Isto sem nunca perder o sentido da sua missão: “At 25, bright, beautiful and — for a royal — easily outgoing, there could be no sense that her reign would be consolation, much less compensation, for all the vanishings that would befall Britain: colonies, marriages, industries. But from the outset, even before she became Queen, in what she later called her “salad days” when she was “green in judgment”, Elizabeth was strikingly touched by the gravity of her vocation.” Algo de tomou consciência muito nova, pois não podemos esquecer a promessa que fez no próprio dia em que completou 21 anos: “I declare before you all that my whole life, whether it be long or short, shall be devoted to your service and the service of our great imperial family to which we all belong. But I shall not have the strength to carry out this resolution alone unless you join in it with me as I now invite you to do.”
- O outro artigo foi publicado no Telegraph por Sir Charles Moore, o biógrafo de Margaret Thatcher, e chama-se sintomaticamente The Queen was loved because, for more than 70 years, she did what she had promised. Nele desenvolve-se precisamente a ideia que referi atrás. É um texto muito bonito mas também penetrante politicamente, onde além de se recordar como, discretamente mas sem falhas, a Rainha desempenhou um importante papel na forma como facilitou as relações internacionais do Reino Unido, não foge ao ponto de que o seu papel mais determinante foi o desempenhado na “home front”: “What mattered most, however, was here at home. The Queen paid most formal attention to the basic elements of the British state – Parliament, the law, the Church of England, the armed forces, which last she dramatised so gallantly by riding side-saddle on her horse Burmese for Trooping the Colour. But the key to her reign was its even distribution of favour. Her approach resembled John Donne’s famous description of heaven: she made sure there was “no noise nor silence, but one equal music”.
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A descoberta dos podcasts |
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Isto de ter começado a fazer rádio com mais 60 anos fez com que descobrisse muito tardiamente – reconheço – o mundo dos podcasts. Agora que eu próprio tenho os meus na lista, na longa lista, dos podcasts do Observador, tornei-me também um fã assumido deste tipo de conteúdos, pelo que prometo dar aqui conta regularmente daquilo que for descobrindo. |
Não quis, no entanto, deixar passar esta semana sem referir um dos meus podcasts preferidos, The Rest is History (sim, tem o mesmo nome do nosso podcast, do Rui Ramos e do João Miguel Tavares, E o Resto é História). É uma conversa entre dois historiadores ingleses, Tom Holland (há vários livros dele traduzidos em Portugal) e Dominic Sandbrook, uma conversa muito informativa e quase sempre divertida. Não deixei passar porque, numa só semana, eles produziram seis podcasts, quatro sobre a História de Portugal (já ouvi dois e vale a pena, proporciona-nos algumas surpresas) e dois sobre a Rainha Isabel II. Estes podcasts de História estão disponíveis nas plataformas habituais (Apple Podcasts, Spotify, Audible, Amazon Music e por aí adiante). |
Um livro e uma tragédia |
Há exactamente 100 anos – mais exactamente a 13 de Setembro de 1922 – Esmirna, na Ásia Menor, começou a arder. O fogo duraria vários dias e destruiria por completo os quarteiros gregos e arménios de uma cidade que, na Turquia otomana, se tinha transformado num cidade aberta, multi-étnica, uma cidade de tolerância que era também imensamente rica e cosmopolita. O fogo foi a antecâmara da tragédia final que foi a guerra greco-turca, no fundo uma aventura grega na Anatólia, uma incursão militar em que os gregos procuraram tirar partido da fraqueza dos turcos depois da sua derrota na I Guerra Mundial, mas uma aventura que acabou muito mal às mãos de Ataturk, o fundador da Turquia moderna. O incêndio de Esmirna não foi só uma imensa catástrofe humana – morrerem muitas dezenas de milhar de habitantes – mas o gatilho para uma gigantesca limpeza étnica que obrigou os gregos a abandonarem a Ásia Menor, onde estavam há 25 séculos, e depois também levou à expulsão das populações turcas dos territórios do novo estado grego. Estima-se que esta troça forçada de populações tenha envolvido um milhão e meio de gregos e 400 mil turcos. Ainda hoje são muitas as feridas por sarar naquela região, alimentando crises regulares entre a Turquia e a Grécia (estamos a viver mais uma), pelo que esta semana dediquei a minha conversa semanal com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto precisamente a este tema – Tragédia de Esmirna foi há 100 anos. Ainda sangra – e para a preparar fui buscar à estante um livro que lá estava a aguardar pela sua oportunidade: Paradise Lost: The Destruction of Islam’s City of Tolerance, de Giles Milton. É um retrato fascinante não só daquela cidade como uma quase reportagem do que lá aconteceu naqueles dias dramáticos de há 100 anos pois o autor ainda conseguiu falar com algumas das testemunhas dessa tragédia. É também um livro que nos recorda como naquilo a que em tempos chamávamos Levante existiam cidades abertas e vibrantes, cidades onde viviam nomeadamente muitos judeus descendentes de portugueses. Digo isto porque não posso também esquecer Salónica, ela também recordada num belo livro de Mark Mazower – Salónica, Cidade de Fantasmas: Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Estas duas cidades de tolerância foram destruídas, cada uma à sua maneira e com diferentes agressores, na primeira metade do século passado, pelo que recordá-la não é apenas recordar um mundo perdido, é recordar como “cidades de tolerância” podem ser lugares frágeis e perecíveis. |
A fotografia – Uma chávena de chá em Lisboa |
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A fotografia que escolhi para esta semana já tem alguns anos – tirei-a a 27 de Outubro de 2017, no interior da Central Tejo, em Lisboa – e acho-lhe graça por, de alguma forma, contar a história de Boris Johnson, um político que não resistiu à sua própria natureza e abandonou esta semana o n.º 10 de Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro britânico. A história desta imagem é algo surpreendente, sobretudo para quem espera comportamentos previsíveis de figuras públicas. Vale a pena contá-la. Nesse dia, o então ministro dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade esteve em Lisboa e teve na Central Tejo um encontro com alguns portugueses, incluindo alguns jornalistas, incluindo eu próprio. Falou um pouco sobre a “mais velha aliança” do Mundo (nesse mesmo dia gravaria mesmo ali ao lado um pequeno vídeo sobre o mesmo tema para as suas redes sociais, um vídeo com uma gravação atribulada) e o evento nada teria de especial não acontecesse que estava também lá um fotógrafo britânico residente em Portugal que queria fazer uma sessão fotográfica com ele e até tinha montado ali mesmo um estúdio improvisado. Para minha absoluta surpresa, Boris Johnson aceitou posar à frente de nós todos, a certa altura até aceitou fingir que bebia uma chávena de chá, fazendo tudo com um ar indiscutivelmente divertido. Ora, foi muito esta sua natureza imediatista, impulsiva e a sua incapacidade de resistir a tentações que se revelou fatal na sua passagem pelo governo. O político que indiscutivelmente sempre soube ganhar eleições nunca soube como comportar-se, e acabou por não resistir às festas do seu Gabinete durante o confinamento. De resto, e ao contrário do que muitos afirmam, nunca pensei que ele fosse um “Trump britânico”, longe disso, quanto mais não seja por ter escrito um belíssimo livro sobre Churchill. E também porque, como já ouvi dizer a britânicos, é dos poucos políticos que gostaríamos que se juntasse a nós num pub para beber uma cerveja – ia-nos de certeza divertir imenso. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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