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A explosão deste sábado na ponte da Crimeia fez aumentar a tensão depois de uma semana em que o exército ucraniano continuou a avançar no terreno, surgiram sinais de divisões no Kremlin e Vladimir Putin nomeou um novo comandante, conhecido pela sua brutalidade, para liderar as operações na Ucrânia. Mas as atenções estiveram centradas na ameaça de utilização de armamento nuclear, pelo que recordo hoje como é fundamental não nos voltarmos a iludir sobre a verdadeira natureza do regime putinista. |
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Uma manhã no Kremlin, ainda Anna Politovskaia era viva |
Só estive uma vez numa mesma sala que Vladimir Putin – foi em Junho de 2006, no Palácio Estatal do Kremlin, o gigantesco auditório que fora construído para as reuniões magnas do Partido Comunista da URSS e onde então se realizava o 59º Congresso da Associação Mundial de Jornais (WAN). O presidente russo chegou atrasado, aparentemente para não ter de assistir à cerimónia de entrega do prémio de liberdade de imprensa, mas mesmo assim não suficientemente atrasado para não escutar o discurso de Gavin O’Reilly, um irlandês com mais de dois metros de altura que denunciou vigorosamente as restrições à liberdade de imprensa na Rússia. Estávamos, repito, em Junho de 2006, Anna Politovskaia, a corajosa jornalista que expusera as barbaridades da guerra da Chechénia, só seria assassinada em Outubro, precisamente no dia do aniversário de Putin. Poucas semanas depois, em Novembro desse ano, seria Alexander Litvinenko que morreria envenenado. |
Nessa altura já não era possível ter ilusões sobre quem era e o que pretendia Vladimir Putin – aliás não apenas desde essa altura: a Spectator acaba de recordar o que foi publicando ao longo dos anos sobre o presidente russo – Putin at 70: How The Spectator has covered his life – e é possível verificar que logo que ele chegou ao poder que não faltaram os alertas. Eu mesmo escrevi logo em Março de 2000, quando ele se tornou presidente, que “a sua ideologia – se é que tem ideologia – é a do ressurgimento nacional grã-russo”, num texto em que alertava para o regresso do autoritarismo ao Kremlin. |
Ao longo destas mais de duas décadas houve, foi sempre havendo, milhares de alertas, foram publicadas resmas de livros, todas as ilusões que houvesse tinham de ter desaparecido pelo menos desde o agressivo discurso de Munique em 2007. Já lá estava tudo, já não se disfarçava ao que se vinha. Mas depois houve a invasão da Geórgia em 2008 e nada aconteceu. Como nada aconteceria depois da anexação da Crimeia em 2014. |
Passámos estes anos todos a ver, a ouvir e a ler – e a escolher nada fazer. Por isso foi possível chegar ao ponto em que estamos, o mais perigoso desde o fim da Guerra Fria, por isso criámos a condições para que Vladimir Putin sentisse que podia reincidir quando em Fevereiro invadiu a Crimeia e agora sinta que pode ainda vencer se nos intimidar com a ameaça nuclear. Porque é exactamente esse o ponto em que estamos, no momento de saber se nos assustamos com a possibilidade de acontecer o impensável, até porque o líder russo já mostrou que é mesmo capaz do impensável. |
Por isso importa tentar perceber o momento que vivemos e também por isso recordei aquela sessão de Junho de 2006, até porque me lembrei dela quando esta semana li Timothy Snyder a propósito do que Putin pode ou não fazer. Timothy Snyder é um grande historiador, especialista na Europa do Leste, autor de duas obras tão marcantes como Terra Sangrenta – A Europa entre Hitler e Estaline e Terra Negra – O Holocausto como História e Aviso, e agora num texto muito interessante, How does the Russo-Ukrainian War end?, explica-nos como no fundo Putin ficou sem pé ao perder dois dos pilares em que assentava muita da força do seu regime: a crença popular de que a realidade é a que a televisão mostra e só essa, e a mentira de que o que se passa no estrangeiro é mais importante do que a política doméstica. As derrotas na Ucrânia e a necessidade de recorrer a uma mobilização muito pouco parcial fizeram com que os russos deixassem de acreditar na irrealidade das televisões para perceberem que algo de realmente grave estava a acontecer com a aventura militar. |
Mas Putin não é apenas um líder que perdeu o pé na frente interna, é também alguém que se deixou encurralar ao desencadear uma guerra que, sabemos hoje, não podia ganhar. Por isso tem razão Joe Biden quando diz que é necessário levar a sério as suas ameaças, e mais razão tem ainda quando acrescenta que isso pode provocar uma catástrofe global. Mesmo podendo nós ter dúvidas sobre se Putin está apenas a fazer “bluff” (como se discute neste especial do Observador), a verdade é que temos de ter bem presentes todos os riscos e estar preparados para eles. |
Como se discutiu um pouco por todo o lado esta semana (no New York Times e na Spectator, para citar só dois dos textos mais interessantes, também nos podcast do Telegraph e da Voz da América, e no meu Contra-corrente Not a happy birthday, Mr. President, com a participação do José Milhazes), os cenários do Apocalipse têm de estar em cima da mesa e uma resposta musculada tem de estar a ser preparada, mesmo que isso assuste muito, mesmo que isso possa representar uma escalada sem fim à vista (no Guardian sintetizaram-se bem os dilemas da administração Biden). |
Isto porque desta vez não é possível fingir que não vemos, não ouvimos ou não lemos, isto é, não é possível senão recusar a chantagem nuclear. Como justamente sublinhava Timothy Snyder no artigo que já referi, ou como também se reforçava na The Atlantic, ceder à ameaça nuclear é sinalizar todos os que têm, e também os que não têm, armas nucleares que a sua simples posse os autoriza a subverterem a ordem internacional, a anexarem os territórios que entenderem, a vergarem os demais à sua vontade. |
Putin pode estar a fazer “bluff”, é até natural que não queira dar o passo fatal, mas sabemos que quando nos aproximamos do precipício o jogo fica muito perigoso, porventura até mais perigoso do que esteve durante os 13 longos dias da crise dos mísseis de Cuba, como refere quem estudou o assunto. |
Mais: temos de ter consciência de que Putin já partiu para esta guerra numa posição de fraqueza, e por isso é que a sua ameaça ainda é maior, como explicou o Rui Ramos em Porque é que Putin é perigoso?, assim como temos de estar de conscientes que ao ter-se deixado encurralar na guerra convencional que escolheu travar na Ucrânia pode convencer-se que não só ele como a própria Rússia enfrentarão uma ameaça existencial se as suas tropas forem expulsas das regiões que ocuparam. Não se esqueçam da história que eu aqui já recordei sobre a sua própria experiência com um rato encurralado. |
Leituras: É muito difícil entrar na cabeça de Putin |
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Entre os muitos textos que fui lendo ao longo desta semana para preparar o meu programa e para escrever esta newsletter, gostaria de deixar nota destacada para alguns deles. |
Começo pelo ensaio do historiador Timothy Snyder How does the Russo-Ukrainian War end?. Snyder também publicou esta semana na edição em papel da Foreign Affairs (Ukraine Holds the Future – The War Between Democracy and Nihilism, acesso reservado a assinantes), mas do texto que destaco chamo a atenção para esta passagem:
The earth has moved under Putin’s feet. His political career has been based on using controlled media to transform foreign policy into soothing spectacle. In other words: regime survival has depended upon two premises: what happens on television is more important than what happens in reality; and what happens abroad is more important than what happens at home. It seems to me that these premises no longer hold. With mobilization, the distinction between at home and abroad has been broken; with lost battles, the distinction between television and reality has been weakened. Reality is starting to matter more than television, and Russia will start to matter more than Ukraine. |
Como já referi, a The Spectator recuperou, para o 70º aniversário de Putin, muitos dos textos que foi publicando ao longo dos anos. É aliás desse trabalho a imagem que reproduzo acima. Da longa lista de textos seleccionei uma entrada no diário de outro historiador, Simon Sebag Montefiore, um texto publicado a 9 de Fevereiro de 2002 (sim: em 2002):
‘A bizarre thing happened to me the other day: I was invited to a posh London hotel to meet a mysterious apparatchik from the Kremlin. He asked me enigmatic questions about my biography of Prince Potemkin. Did I feel that Potemkin could be a role model, or even a hero, for Russia in the 21st century? The Soviet leaders, particularly Stalin, had admired Ivan the Terrible, but ‘the powers above’, as he put it, no longer felt that those blood-spattered tyrants were appropriate for a democracy. Potemkin and Catherine the Great possessed the right mix of humanitarianism, reform and autocracy, he suggested. Were there any parallels between the era of Potemkin and that of President Putin? He asked me to write a memorandum for the ‘powers above’. I delivered my homework secretly and heard no more about it until I recently happened to hear President Putin being interviewed. He was asked about his historical inspirations. To my amazement, he replied that the era he most admired was that of Catherine and Potemkin. The book is being published in Russian later this year.’ |
Finalmente seleccionei da The Atlantic um ensaio, de Eliot A. Cohen, com uma boa argumentação sobre o porquê de ser uma loucura ceder à chantagem nuclear de Putin. Em Russia’s Nuclear Bluster Is a Sign of Panic ele sublinha que…
To yield to nuclear blackmail, however, would be folly. Give in now, and anyone with nuclear weapons will learn that the secret to success in a negotiation is to froth at the mouth, roll up one’s eyes, and threaten a mushroom cloud. To yield to Putin would be, as Churchill said in a different but not entirely dissimilar context, to take “but the first sip from a bitter cup.” |
Uma obsessão – a Rússia, livros sobre a Rússia |
Nos últimos meses admito que tem sido quase obsessivo, e quem segue esta newsletter é capaz de já ter percebido: leio tudo o que posso sobre a Rússia, e felizmente os editores portugueses têm recuperado algum atraso e publicado algumas das melhores obras sobre o que se tem passado no país de Putin. A Relógio de Água acaba de editar mais duas, O Futuro É História: Como o Totalitarismo Se Apoderou da Rússia, de Masha Gessen, e O Regresso do Leviatã Russo, de Sergei Medvedev. Apesar de ambas fazerem parte de algumas listas sobre os melhores livros para compreender a Rússia, são duas obras muito diferentes. Masha Gessen, que nasceu ainda na União Soviética e já não a primeira vez que escreve sobre esta realidade, tem a mestria do relato própria de um jornalista e descreve-nos a deriva do país através das vidas de quatro jovens russos nascidos na década de 1980. Já Sergei Medvedev, um académico, reúne neste volume um conjunto muito bem organizado de ensaios. Tenho saltitado entre os dois com grande proveito. |
As minhas caminhadas a ouvir podcasts |
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Nos últimos tempos ganhei um hábito novo: enquanto faço as minhas caminhadas vou ouvindo podcasts. Eu sei que no nosso país os podcasts ainda não entraram nos hábitos dos portugueses, mas é pena, até porque o Observador tem uma oferta muito variada e alargada. Reconheço que antes da Rádio Observador este também era um mundo que eu mal conhecia, mas agora tomei-lhe o gosto e, sempre que vou passear com os meus cães, ligo-me ao telemóvel, escolho um podcast e vou ouvindo – ao meu ritmo e sempre de acordo com a minha disponibilidade. Por isso quero partilhar convosco uma descoberta desta semana, a incrível série de oito podcasts da The Economist sobre o presidente chinês, Xi Jinping. Chama-se The Prince e está a encher-me as medidas (digo está-me porque ainda não acabei de os ouvir a todos). Pode também encontrá-los nas plataformas habituais (Apple Podcasts, Spotify, Google, RSS), talvez não possa é fazer como eu fiz ontem – ir aprendendo muito sobre a China e o seu líder enquanto passeia à beira-mar. Para mim um cenário ideal, até porque as praias voltaram a estar como eu gosto delas, quase sem ninguém. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |