Quando olhamos a história do Portugal contemporâneo, a história do nosso tempo ou de um tempo ainda vivido por alguns de nós, não temos dúvidas: são os vencedores que fazem a História. No regime anterior, vivíamos, dizem-nos, numa temerosa sociedade feudal, onde sob o permanente terror da Gestapo portuguesa, as mulheres andavam todas de preto e de lenço na cabeça e os intelectuais antifascistas iam presos por falar nos cafés ou por dizer “vermelho” em vez de “encarnado”.
Será o 25 de Novembro a excepção que confirma esta regra? É que, quanto ao 25 de Novembro, parecem ser os perdedores que fazem a História, com a narrativa oficial da esquerda radical então neutralizada a contaminar, não só os seus descendentes intelectuais e políticos, mas também o Centrão, institucionalmente dominante há quase meio século.
Os ciclos das primeiras revoluções
Desde as primeiras revoluções europeias – a Inglesa do século XVII e a Francesa do final do século XVIII – que as revoluções têm ciclos e começam com um acto simbólico para marcar o fim do antigo regime e o princípio do ciclo revolucionário, como cortar a cabeça ao Rei (um acto simbólico para todos menos para o decapitado). As cabeças que rolaram nestas primeiras revoluções, a inglesa e a francesa, foram a do voluntarioso Carlos I, Stuart, e a do resignado Luís Capeto, Bourbon, 16º na longa nomenclatura começada por Luís I, o Piedoso (778-840), filho de Carlos Magno e de Hildegarda de Suábia, rei dos Francos e imperador do Ocidente.
A Revolução Inglesa, contra os Stuart (que, argumentavam os revolucionários, queriam restaurar o absolutismo), não durou muito: Cromwell proclamou-se Lord Protector e instaurou uma ditadura punitiva que tratou muito mal os católicos irlandeses, bem como os que achavam que cortar o pescoço ao rei era o mesmo que acabar com a propriedade privada. Carlos II, filho do decapitado Carlos I, voltou em 1660, pouco mais de uma década depois da morte do pai e castigou exemplarmente uns regicidas, perdoando outros.
A Revolução Francesa foi mais sanguinária e teve efeitos mais duradouros, mas também teve o seu Tempo dos Moderados e, depois do Terror, a Acalmação ou Thermidor, quando o decapitador-mor, Robespierre, perdeu o poder e a cabeça.
De Abril a Novembro
A revolução de Abril, de que estamos a festejar o meio-século, não decapitou ninguém (limitou-se a despachar os governantes vencidos rapidamente e em força para o Brasil, via Madeira) e, até ao 28 de Setembro, prosseguiu com o Tempo dos Moderados. Mas também teve o seu Terror, com a histeria dos antifascistas à solta, os mandatos de captura em branco, as centenas de prisões do COPCON e as nacionalizações do 11 de Março, que escaqueiraram por muitas décadas a economia portuguesa.
A resistência começou quando os socialistas do Dr. Soares, depois de se terem incomodado muito pouco ou até aplaudido as prisões dos “fascistas”, se deram conta de que eram os próximos na lista dos “suspeitos” e acordaram para os perigos da esquerda radical e do comunismo – coisa para que “o povo do Norte”, enquadrado por alguns sacerdotes, já tinha acordado.
O movimento partiu das terras do Minho e veio descendo para Sul, até Rio Maior. Ao mesmo tempo, vários antigos Comandos, coordenados por Victor Ribeiro, presidente e fundador da Associação de Comandos, começavam a percorrer o país, convocando os antigos camaradas para a resistência.
Foi daqui, de toda esta convergência de vontades e riscos, que se fez a resistência à esquerda radical e se chegou ao 25 de Novembro.
Uma frente alargada e promíscua
Na frente alargada em que acabou por se transformar essa resistência, encaixaram-se depois entidades como o Grupo dos Nove que, em Julho, já depois dos movimentos populares e dos assaltos às sedes do PCP, já depois de manifestações anticomunistas, como a da Fonte Luminosa, vieram tomar partido pela nova maioria. Jaime Gama, com a sua sibilina e inteligente reserva, veio recentemente fazer luz sobre o tema (numa conversa com Maria João Avillez para o livro Eu Estive Lá: 50 Anos de Democracia em conversas), dando a entender o que pensava de um Grupo como o dos Nove, “que colocava o combate aos governos sociais-democratas no mesmo plano que o combate aos governos comunistas de leste”.
A convergência um pouco promiscua destas forças acabou também por determinar a promiscuidade do poder instalado no pós-25 de Novembro, um Thermidor português em que Robespierre ficaria com a cabeça sobre os ombros e só uns comparsas menores, de “extrema-esquerda”, seriam exibidos como bodes expiatórios.
Talvez não pudesse ter sido de outra maneira. A partir do 25 de Abril e da perda do Império, Portugal passava a fazer parte daqueles países sem grande importância nem independência de decisão na cena internacional. Para a União Soviética de então, o que contava no pós-revolução não era, instaurar uma Cuba no coração da Euro-América, mas ter, via Lisboa, influência na descolonização de Angola.
É importante lembrar o testemunho de Frank Carlucci, então embaixador norte-americano em Lisboa, sobre as garantias dadas pelo embaixador soviético de que Moscovo não queria alterar, em Portugal, o jogo de Ialta. Na sua lucidez, o Dr. Cunhal sabia que era assim e nunca iria quebrar a disciplina internacionalista. Mais, sabia que, a haver uma guerra civil em Portugal, iria perdê-la.
Por isso os fuzileiros, onde o PC tinha influência, não saíram para fazer frente aos Comandos de Jaime Neves, permitindo um 25 de Novembro (quase) pacífico, um Thermidor que decretou o fim do Terror gonçalvista-otelista, empossando, até hoje, um Centrão – que, entretanto, respeitou os vencidos de Novembro a ponto de tolerar ou até de adoptar os seus postulados culturais e a sua narrativa da História.
PS: O PS, talvez esquecido do tempo em que esteve “ao lado do povo” na Fonte Luminosa, ou agora apagado e apegado a outras narrativas mais inclusivas das minorias radicais, votou contra a sessão de comemoração do 25 de Novembro na Assembleia da República. O PC, tal como há 50 anos, optou por não comparecer; o Bloco, em protesto, anunciou que só ia mandar um dos seus cinco deputados; e o Livre repreendeu o PSD por transpor as linhas vermelhas “encostando-se à extrema-direita” para comemorar a data.