O dia 31 de janeiro é um dia sombrio para a União Europeia devido à saída do Reino Unido. Deve ser, também por isso, um dia de profunda reflexão acerca do futuro da Europa. Regresso, assim, ao tema das grandes transições e da sua convergência ou divergência (Observador, 08.04.2018). A saída do Reino Unido é um bom pretexto para reconsiderar o projeto europeu, tanto mais que a década que agora se inicia nos reserva não apenas grandes transformações, mas, também, grandes incógnitas: a transformação socio-ecológica e a incógnita das alterações climáticas, a transformação socio-digital e a incógnita da inteligência artificial e do transumanismo, a transformação sociodemográfica e a incógnita das migrações, a transformação socio-laboral e a incógnita do emprego, a transformação sociopolítica e a incógnita da democracia liberal. Serão estas transformações convergentes ou divergentes? Poderemos esperar uma Grande Transformação, um Novo Momento Polanyi na década que agora começa, com um novo fôlego, impulsionados pela saída do Reino Unido ou, ao contrário, começa aqui um longo crepúsculo para a Europa, a estagnação do projeto europeu?
1 As grandes transformações parecem atropelar-se mutuamente
Os próximos desafios já se perfilam, as guardas pretorianas preparam os contingentes respetivos: de um lado, as democracias liberais, representativas e participativas, a sociedade do conhecimento, a economia das multidões e das plataformas colaborativas, do outro, os nacionalismos, os populismos, os autoritarismos, os racismos e os fascismos societais mais variados.
Neste contexto, as grandes transformações estão por sua conta e risco, apesar dos esforços da União Europeia para “convencionar” algumas dessas transformações, seja o pacto ecológico europeu ou o mercado único digital. Não obstante, elas não parecem convergir, atropelam-se mutuamente e criam novas desigualdades e clivagens entre os Estados membros da União Europeia, pelo que não surpreende que a polarização social e política se acentue e agrave, como se constata pelas manifestações e protestos nas ruas um pouco por todo o lado.
As razões deste atropelo também já são conhecidas, a saber, a pressão dos mercados financeiros, a emergência do capitalismo verde, o gigantismo dos conglomerados tecnológicos, a escassez gritante dos recursos comuns europeus, a disfuncionalidade dos ciclos políticos curtos e sobrepostos, a falta de liderança política e de uma linha de rumo clara para levar a bom porto a transição entre os diferentes ciclos de transformação.
Com efeito, cada transformação tem um tempo próprio de transição e maturação. A transformação socio-ecológica tem, ela própria, muitos ciclos internos de transição, basta pensar nas políticas de mitigação, adaptação e compensação. A transformação digital é muito mais rápida, pode emprestar essa rapidez a outras transições, mas, ela também, tem muitas velocidades de digitalização e aprendizagem digital. Em relação à transformação sociodemográfica a regra é a redução da fecundidade e da mortalidade e, do mesmo passo, a mobilidade crescente associada a fluxos migratórios de vária natureza. Quanto à transformação socio-laboral assistimos à dualização, polarização e precarização do mercado de trabalho e a uma variabilidade e pulverização crescentes de condições e estatutos socioprofissionais e, bem assim, de fluxos migratórios correlacionados. Finalmente, a transformação sociopolítica irá oscilar entre a democracia representativa mais convencional, com uma ou outra alteração no regime eleitoral, a democracia participativa e colaborativa com as inovações proporcionadas pela transformação digital e a democracia direta populista e referendária em alguns outros casos.
2 Um Novo Momento Polanyi para a década de 2030?
O quadro seguinte serve para ilustrar a complexidade do empreendimento que a União Europeia tem pela frente para a próxima década.
O Momento Polanyi (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944) anuncia uma transformação civilizacional e cultural das sociedades quando se constata que as instituições, na sua generalidade, deixaram de acompanhar as mudanças introduzidas pelas forças produtivas e sociais dominantes. O que quero aqui sublinhar como mais relevante são as “propriedade emergentes” deste sistema tão interdependente que, se não forem devidamente “convencionadas”, coordenadas e monitorizadas, acabarão por fazer fracassar e ruir todo o empreendimento. E esse é o risco que corre a União Europeia na próxima década, isto é, a falência da sua governação sistémica e multiníveis incapaz de lidar com o princípio geral de que “o todo é maior do que a soma das suas partes”. Se assim acontecer, se não forem as convenções ou os pactos europeus a determinarem o rumo dos principais acontecimentos na União Europeia, então, o lado tóxico das grandes transformações irá prevalecer sobre o lado mais benigno ou virtuoso e poderemos recear muitas surpresas na década que se aproxima.
3 Riscos globais e governo dos comuns
As principais linhas de fratura que atravessam a União Europeia, hoje e no futuro próximo, autorizam que façamos a associação entre riscos globais e tragédia dos comuns. Neste sentido, o combate aos grandes riscos, do risco humanitário ao risco climático, do risco sanitário ao risco financeiro, do risco económico ao risco securitário, através da formação de “comunidades de risco” europeias e globais, poderia ser a fonte de relegitimação política que faz falta à União Política Europeia, para lá da legitimidade formal que lhe é conferida pelas regras de governo das instituições europeias hoje existentes.
Com efeito, a qualquer momento pode eclodir um facto grave e precipitar uma crise de consequências imprevisíveis e com custos insuportáveis para um estado membro. Sabemos que sempre foram os fatores externos a determinar os grandes momentos do projeto europeu e hoje, os “bons pretextos” abundam: as migrações de refugiados, os eventos climáticos e sanitários, os estados falhados do Médio Oriente e do Norte de Africa, os efeitos colaterais do problema russo-ucraniano, as implicações do neoprotecionismo global, o terrorismo internacional, para citar apenas alguns.
E porquê um governo dos bens comuns para a união política europeia? (Observador, 15.07.2018).
A preservação de um bloco europeu politicamente integrado é a única solução para um país pequeno como o nosso nesse mundo muito conturbado que nos espera. Nesse sentido, os princípios gerais de um federalismo partilhado, cooperativo e descentralizado, protegem, por um lado, a União e os Estados mais pequenos de uma política de potência ou de um unilateralismo hegemónico e, por outro, reforçam as competências da autonomia local, regional e inter-regional e, no geral, a cooperação territorial descentralizada, de acordo com o princípio de subsidiariedade. Por isso, na teoria do federalismo cooperativo e descentralizado que eu proponho para a união política europeia, cabe um “pacote de bens comuns”, alinhado de acordo com o princípio sistémico das “propriedades emergentes” onde o todo é maior que a soma das partes. Falo de um governo dos bens comuns repartido por três blocos.
O primeiro bloco de bens comuns fundamentais, em linha com uma visão mais civilista da sociedade europeia, considera a soberania partilhada e colaborativa no quadro da teoria do federalismo, a carta dos direitos fundamentais e a criação de uma procuradoria europeia, a preservação do modelo social europeu como paradigma civilizacional, a coesão territorial e a cobertura dos grandes riscos a nível europeu, como os traços essenciais de uma visão mais policêntrica e cosmopolita da sociedade europeia.
Um segundo bloco considera os bens comuns de natureza mais instrumental, a saber, a natureza, dimensão e funções do orçamento da união política, onde se inclui a tributação própria, em seguida, o papel do banco central com as funções de reserva federal e, por último, a criação de um fundo monetário europeu e de um mecanismo de gestão da dívida pública europeia com o duplo objetivo de providenciar maior estabilidade financeira aos Estados membros e mais recursos financeiros à União Europeia junto dos mercados internacionais, numa lógica claramente mais federal.
Finalmente, um terceiro bloco de bens comuns, onde se inclui a política externa e de segurança e a defesa comum, sendo de realçar nesse contexto as relações com a Rússia, o Grande Médio Oriente e o Mediterrâneo e, agora, também, as relações transatlânticas. Por paradoxal que possa parecer, estes fatores externos não são apenas ameaçadores para a Europa, podem ser, também, uma fonte e um pretexto unificadores, no sentido, se quisermos, de uma “nova guerra fria” junto à fronteira leste e sul europeia. A formação de uma União para o Mediterrâneo apoiada por um “Grande Plano Delors” pode desempenhar, neste contexto, um papel configurador e moderador de grande relevância geopolítica e geoestratégica.
Como facilmente se comprova, uma restrição fundamental que condicionará toda a política europeia na próxima década será o financiamento da política externa e de segurança comum que irá exigir, doravante, um volume muito mais substancial de recursos financeiros, se quisermos evitar que os riscos globais não se transformem rapidamente numa tragédia dos comuns e, por maioria de razão, agora que se confirma a saída do Reino Unido. Para tal, teremos de mobilizar em conjunto as contribuições dos Estados membros, os recursos próprios do orçamento da união, os empréstimos financeiros do mercado internacional e os recursos monetários da própria reserva federal. Esta mobilização, por mais progressiva que seja, só é possível no quadro de uma União Política Europeia de características federais e de um sistema de governo com os atributos do federalismo cooperativo.
Notas Finais
Num ambiente interno e internacional que não lhe é favorável, a União Europeia irá prosseguir, durante a próxima década, uma verdadeira quadratura do círculo, isto é, terá de conciliar mais descarbonização e digitalização com mais crescimento económico e emprego de qualidade e, ao mesmo tempo, impedir grandes arritmias de crescimento entre países e clivagens na estrutura social e nos mercados de trabalho, prevenir e cobrir os impactos assimétricos e os custos de eventos graves de origem climática e corrigir as desigualdades sociais e as assimetrias de coesão territorial.
Aqui chegados, o que fica por saber é se os europeus chegam lá por via da vontade esclarecida, da necessidade ou por via do acaso, digamos, de um grande susto. Espero que, em qualquer caso, a União Europeia não procure, mais uma vez, um alibi de conveniência de origem externa para deliberar contrariada, por cima das suas dúvidas sistemáticas e crises de consciência a propósito do projeto europeu. É certo, já sabemos que o pensamento político sobre estas matérias está muito condicionado pelas agendas oficiais, as corporações de interesses e as agências de propaganda político-mediática. No pensamento dominante, chama-se a isto “a realidade” e a realidade não se compadece com o federalismo cooperativo e a teoria dos bens comuns. Infelizmente, é aqui que nós estamos, em território suspeito e sob condição.