Este fim-de-semana assisti ao filme King Richard, em que Will Smith faz de Richard Williams, o pai das tenistas Venus e Serena Williams. Conta a história de um homem obstinado que, ainda antes de nascerem, traça um plano ambicioso para ter duas filhas campeãs de ténis. Sinceramente, não gostei. O filme vem classificado como biopic e afinal trata-se de ficção científica. Diz que é inspirado numa história real, mas parece mais baseado numa história do Philip K. Dick.

Vejamos: Richard é pobre, sustenta uma família numerosa num bairro carenciado, é obrigado a ter dois empregos e, mesmo assim, ainda arranja disponibilidade para treinar diariamente as duas filhas, tudo para fazer delas as melhores mulheres da história do ténis. Não faz qualquer sentido. É inverosímil alguém dar-se a tanto trabalho para isso, quando há formas bem mais fáceis de alcançar esse objectivo. Para quê ter duas filhas e treiná-las todos os dias desde os 3 anos, quando bastava ter dois filhos, treiná-los uma vez por semana desde os 16 anos e dizer-lhes para se declararem mulheres e competirem no circuito feminino, que dominariam facilmente? É o que qualquer pessoa faria.

Foi o que fez a nadadora americana Lia Thomas que, até 2021, era o nadador americano William Thomas. Na passada quinta- feira, ganhou a prova das 500 jardas livres nos campeonatos universitários dos EUA, depois de já ter vencido várias competições regionais e estabelecido alguns recordes. Pelos vistos, o “livres” em “500 jardas livres” tem um significado mais abrangente do que a mera escolha do estilo de braçada.

Quando respondia por William e nadava com rapazes, Thomas era um nadador mediano. Quando se transformou em Lia e começou a nadar com raparigas, passou a ser uma nadadora de elite. O que não quer dizer grande coisa: eu, se estiver a nadar atrás de uma rapariga, também me esforço mais.

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Aliás, devo dizer que percebo Lia Thomas. Enquanto adolescente e jovem adulto, foram muitas as vezes em que desejei estar num corpo feminino. Em algumas dessas ocasiões, também era dentro de água que me sentia melhor. Muitas horas passei na piscina ou no mar, com receio que as pessoas se apercebessem de que eu estava no meio de uma dessas fantasias. Às vezes, só ao fim de bastante tempo, quando já estava a tremer de frio, é que a fantasia desvanecia e eu podia enfim voltar à toalha sem passar vergonhas. Bem sei que não é a mesma coisa, mas achei melhor infantilizar a crónica. Se estou a apontar o óbvio que tanta gente finge não ver, mais vale assumir e ser mesmo tão impertinente quanto a criancinha que diz que o rei está nu e não com uma deslumbrante roupa nova.

Há quem seja contra a possibilidade de homens que se identificam como mulheres poderem competir com mulheres que a biologia identifica como mulheres. Dizem que quem nasceu homem e atravessou a puberdade masculina tem grande superioridade física sobre uma mulher ao nível da envergadura, tamanho de mãos e pés, massa muscular, densidade óssea, capacidade cardiorrespiratória, exposição à e produção de testosterona, entre outras vantagens mecânicas e hormonais. Desculpas de perdedora, como se percebe pela extensão e detalhe das justificações, típicas de quem já sabia que ia ser derrotada e foi arranjar pretextos antes da corrida.

Uma dessas preguiçosas foi Reka Gyorgy, uma mulher que se identifica como aziada. Trata-se da nadadora que, ao ficar em 17º nas eliminatórias, acabou de fora das finais e por isso publicou um protesto na sua conta de Instagram. Se tivesse passado mais tempo na piscina e menos tempo na internet à procura de validação científica para factos que são facilmente observáveis por qualquer leigo que já tenha comparado a compleição física de um homem e de uma mulher, teria melhorado o seu tempo em alguns centésimos de segundo, alcançado o 16º lugar, já não ficaria de fora das finais e acabaria tudo bem. Menos para a outra mulher que perderia o lugar por causa de Thomas, claro. Mas essa que fosse lamuriar-se para o seu próprio Instagram.

Mesmo assim, é uma sorte Thomas identificar-se como mulher e não como criança. Se fosse competir contra meninos de 8 anos, não se aguentava o choro de dúzias de garotos com mau perder. É preciso não esquecer que a piscina faz um eco muito desagradável.

No fundo, esta é uma questão de igualdade entre os sexos. As mulheres têm direito às suas competições, onde competem em circunstâncias iguais; e os homens também têm direito às competições de mulheres, onde competem em circunstâncias vantajosas. Parece-me claro.

Mas é também uma questão de sentimentos. Lia Thomas sente-se triste se não puder nadar contra mulheres. As mulheres sentem-se tristes se tiverem de nadar contra Lia Thomas. Qual das sensações de tristeza devemos favorecer? Se for a de Thomas, beneficia-se uma pessoa e prejudicam-se várias. Se forem as das mulheres, beneficiam-se várias e prejudica-se uma. É uma decisão difícil. Mas, no fim, teremos de optar por Thomas, que, apesar de não querer, morfologicamente é um homem. Como se sabe, os sentimentos estão no coração e o coração masculino é cerca 60% maior do que o feminino, logo a tristeza de Thomas ocupa mais espaço e tem prioridade sobre as tristezasinhas mais pequenas de uma mulher.

Comparando a evolução dos recordes mundiais dos 400 metros livres (o mais próximo das 500 jardas usadas na competição universitária americana), vemos que o melhor tempo masculino é de 3:40.07, alcançado pelo alemão Paul Biedermann em 2009. Já a melhor marca feminina é de 3:56.46, estabelecida em 2016 pela norte-americana Katie Ledecky. Para ter uma noção da diferença, refira-se que o tempo de Ledecky seria o recorde mundial masculino em 1974, quando o americano Tim Shaw nadou a distância em 3:56.96. É uma coincidência curiosa: de facto, parece que as nadadoras de 2022 estão a competir na década de 70 do século passado, quando a misoginia ainda era uma moda gira. Não sei a quantos km/h nada Lia Thomas, mas deve aproximar-se da velocidade do DeLorean do Regresso ao Futuro. Com algumas braçadas, viajou no tempo até uma época em que as pessoas se borrifavam nos direitos das mulheres. Mesmo à campeã.