Tenho uma luzinha vermelha no meu cérebro: quando um texto faz equivalências morais entre, por um lado, algo que pretende criticar e, por outro, organizações do Estado Novo, Salazar ou algum dos muitos ditadores que animam a forma tribal como hoje se discute em Portugal, isso é sinal de que esse artigo não merece o tempo que se gasta com uma resposta.

Mas na vida há sempre excepções. Por isso, decidi responder ao texto “A redação do Observador e a epidemia”, que publicamos hoje. Faço-o, essencialmente, porque Henrique Pereira dos Santos foi colaborador da Rádio Observador durante algum tempo, até motivos profissionais nos terem privado da sua presença.

Henrique Pereira dos Santos começa o seu texto escrevendo que “a forma como a redação do Observador (jornal e rádio) tratam a informação sobre a epidemia está mais próxima do Secretariado Nacional de Informação que do jornalismo”, mas, pela razão que já ficou clara, vou dar a esta referência ao SNI de Salazar o valor que ela tem — nenhum.

De qualquer forma, mesmo com essa boa vontade, é inevitável registar que o começo marca todo o artigo — um texto cheio dos equívocos que resultam de quem olha para o mundo como uma enorme conspiração levada a cabo por agremiações que não se conseguem elevar ao grau certo de pureza moral.

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Henrique Pereira dos Santos começa por elogiar — e muito bem — a “Opinião” do Observador, que, no seu juízo severo, consegue apesar de tudo manter “uma razoável diversidade”. Mas depois, numa confusa reviravolta, queixa-se de algo que foi dito, precisamente, num desses espaços de “Opinião”. Tudo indica, portanto, que os seus elogios à “Opinião” do Observador terminam onde começa a opinião dos outros — uma forma de intolerância, aliás, muito comum em Portugal. E que leva diretamente ao passo seguinte: torcer a opinião dos outros até ela encaixar, direitinha, nos seus preconceitos, como acontece quando se convence (ou nos tenta convencer) que alguém defendeu que “o papel da imprensa é contribuir para que todas as pessoas deveriam ter a mesma ideia na cabeça”.

O equívoco seguinte não é elogioso dos dotes de observação de Henrique Pereira dos Santos. Apesar de, como já referi, ter colaborado durante algum tempo com a redação do Observador, não conseguiu entender como ela funciona. Na sua cabeça, “a redação” do Observador trabalha como um corpo homogéneo e orientado superiormente: a direção do Observador forma uma opinião sobre um tema e depois coloca “a redação” a escrever artigos que comprovem essa opinião. Lamento que alguém que pretende ensinar aos outros o que é “a essência do jornalismo” conheça tão mal o dia a dia do jornalismo que se pratica numa redação com a qual se cruzou e não perceba que ela é composta por pessoas livres, autónomas e nada inclinadas a abdicar do seu espírito crítico.

Henrique Pereira dos Santos também tem algumas teorias sobre os especialistas ouvidos pelo Observador para vários artigos. Sendo um arquiteto paisagista com opiniões fortes sobre epidemias, procura descredibilizar todos aqueles que têm a infelicidade de não partilhar a sua visão heróica sobre a Covid-19, mesmo tratando-se de pessoas que, pelos critérios usados com frequência pelo próprio Henrique Pereira dos Santos, são indubitavelmente mais qualificadas para analisar este tema.

Há umas semanas, o Observador publicou aquilo a que chamou “O Livro Branco da Pandemia”, onde tentava perceber o que tinha corrido mal no combate à pandemia e procurava pistas para o futuro. Foram ouvidos cinco especialistas, mas nenhum agradou a Henrique Pereira dos Santos. Escreve, aliás, que “nem um único dos especialistas convidados é epidemiologista com provas dadas na gestão de epidemias”. A formulação criada por Henrique Pereira dos Santos é divertida. Por esta razão: é que um dos especialistas é mesmo epidemiologista — aliás, é membro do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. Para manter a sua tese perante este facto irrefutável, Henrique Pereira dos Santos acrescenta a expressão “com provas dadas na gestão de epidemias”, dividindo assim, puerilmente, os epidemiologistas em duas categorias arbitrárias que julga servirem os seus propósitos argumentativos.

Para alguém que clama tão desesperadamente pela necessidade de ouvir pessoas com diferentes experiências, estranha-se que critique o facto de um “Livro Branco sobre a Pandemia” ser feito com a colaboração de um epidemiologista (lamento), de dois pneumologistas, de um investigador na área da saúde pública e da bioestatística e de um médico internista e intensivista — todos eles com participação ativa em organismos envolvidos no combate à pandemia ou em universidades, hospitais e associações de referência. De facto, o Observador optou por não ouvir para este trabalho praticantes de especialidades que não têm rigorosamente nada a ver com pandemias mas que forneceram, por exemplo, alguns dos mais reconhecidos porta-vozes dos Médicos pela Verdade.

No final do seu texto, embalado ainda pela mesma forma conspirativa de ver o mundo e por uma indisfarçável nova referência à ditadura salazarista, Henrique Pereira dos Santos escreve que o Observador “achou normal andar a denunciar as pessoas que supostamente não cumpriam as regras, escrutinando as pessoas comuns em vez de escrutinar o poder”. Francamente, quem anda pela vida a tentar ser mártir acaba sempre à procura de quem o oprima.