Um dos politólogos que mais se tem destacado na última década é Yascha Mounk, nascido na Alemanha, mas com cidadania norte-americana desde 2017. O seu trabalho anterior com Robert Foa sobre desconsolidação democrática, em particular entre as gerações mais jovens (voltaremos a este tema muito em breve), já tinha obtido reconhecimento. Mas a crescente popularidade de Mounk resulta da publicação, em 2018, do livro The People vs. Democracy: why our freedom is in danger and how to save it (traduzido entre nós como Povo vs. Democracia), que procura explicar os fenómenos populistas no rescaldo da eleição de Donald Trump.
Para essa análise, Mounk recorre a uma estratégia conceptual fundamental para compreender os nossos regimes democráticos, que é o de recordar que eles resultam do compromisso entre dois elementos: um elemento democrático, que se baseia na soberania e na vontade popular, e um elemento liberal, que se traduz numa dimensão institucional de mediação e limitação do poder político. As nossas democracias resultam, assim, da tentativa de combinar o espírito democrático antigo com os princípios modernos do liberalismo.
É fundamental recordar esta dupla dimensão, pois ela permite – e é assim que o argumento de Mounk segue – interpretar os fenómenos populistas como resultando do desequilíbrio entre estes dois elementos, nomeadamente do peso excessivo que o elemento liberal adquiriu nas últimas décadas. Pensemos na proliferação de instituições não-eleitas, na implementação de lógicas burocráticas e tecnocráticas, no aprofundamento da globalização económica, social e política – e como tudo isto vai esvaziando a possibilidade de as populações determinarem as políticas nacionais. Na verdade, os excessos liberais esvaziam a dimensão democrática, transmitindo aos cidadãos a sensação de que a sua voz não conta para o processo político e que as decisões políticas ocorrem sem, e muitas vezes contra, a sua opinião e vontade.
Não é aqui que encontramos a originalidade do livro. Aliás, para povos como o nosso, que parecem incindivelmente amarrados à União Europeia, sabemos disto muito bem: um dos efeitos de uma UE organizada em torno de uma estrutura burocrática e tecnocrática é não só o afastamento dos cidadãos (com as preocupações democráticas classicamente levantadas e que fragilizam a sua legitimidade), como também limitações à capacidade de os Estados decidirem com autonomia, o que corrói a relação de confiança entre os eleitores e os representantes nacionais. E quando as decisões políticas são entendidas como processos de cariz técnico, a serem tomadas por especialistas, podem até ser as melhores decisões, mas não resultam da vontade dos eleitores, que as interpretam como sendo impostas, e por isso como não verdadeiramente democráticas.
(É, aliás, curioso que um autor tão perspicaz como Mounk não tenha conseguido levantar sequer a hipótese de que as reações populistas nos países do Leste da Europa resultam precisamente do facto de estes países, que estiveram sob domínio durante décadas, se recusarem a aceitar um novo senhor.)
Mas se aquele argumento não é uma originalidade, por que razão vale a pena ler Povo vs. Democracia? Vale a pena porque o autor coloca uma das mais importantes questões dos nossos dias: “Será que o sucesso do regime democrático resultou de condições favoráveis que hoje já não existem?”
O medo da resposta não nos deve impedir de fazer a pergunta, e Mounk tenta responder identificando três condições que conduziram àquele sucesso:
- as décadas de consolidação democrática coincidiram com décadas de crescimento económico, gerando a confiança, junto dos eleitores, de que a democracia se traduz em expectativas positivas quanto ao futuro;
- o processo de construção e consolidação da democracia foi conseguido em sociedades etnicamente homogéneas;
- as décadas de estabilidade democrática resultaram de condições de comunicação de massas controladas por grupos restritos (elites políticas e económicas), que conseguiam dominar as narrativas principais e gerar mais facilmente consensos (ou evitar dissensos).
E tendo-se registado alterações profundas nestas três dimensões, o resultado só pode traduzir-se na atual crise da democracia liberal.
Nas próximas semanas, debruçar-me-ei sobre os dois últimos aspetos; desta vez, importa centrarmo-nos na dimensão económica, repetindo, na verdade, algumas das ideias que já apresentei no ano passado. E se já não faz sentido recorrermos à célebre afirmação “it’s the economy, stupid!”, a economia ainda nos ajuda a compreender a insatisfação crescente com o sistema e de como ela se relaciona com questões de expectativas.
Como Mounk chama a atenção,
“Economicamente falando, os últimos trezentos anos são uma aberração. Durante a maior parte da História, quase não houve crescimento económico. Nos milhares de anos que passaram entre a fundação de Atenas e a invenção da máquina a vapor, o crescimento médio anual ficou-se por modestos 0,1 por cento. E muito desse crescimento deveu-se a um aumento da população total e não tanto a um aumento nos padrões de vida nos lares comuns. (…) Só no século XVIII o crescimento económico se transformou numa realidade vivida para um grande número de pessoas.”
Pela primeira vez, milhões de pessoas viram-se capazes de satisfazer não só as necessidades básicas de alimentação, habitação e vestuário, como ainda se tornaram capazes de adquirir bens de luxo, como frigoríficos, televisões e carros, que se tornaram indispensáveis.
Com o final da segunda guerra mundial e a utilização do crescimento económico dos trinta gloriosos para a construção do Welfare State, as populações passaram a relacionar a melhoria das suas condições de vida, sempre por comparação com as das gerações anteriores, com o sistema democrático. A satisfação com o sistema e a legitimidade democrática resultava desta expectativa implícita de que as regras do jogo funcionariam a seu favor, de que era possível acreditar que as suas vidas seriam melhores do que as dos seus pais e que as vidas dos seus filhos seriam melhores do que as suas.
As circunstâncias económicas começaram a alterar-se no final do século XX: não só o crescimento económico passou a ser mais desigualmente distribuído (aumentando a diferença entre os muito ricos e as restantes classes), como, no século XXI, as economias ocidentais começaram a abrandar:
“A diferença é particularmente gritante nos Estados Unidos. Entre 1935 e 1960, o nível de vida do lar norte-americano médio duplicou. Entre 1960 e 1985, voltou a duplicar. Desde 1985, essencialmente manteve-se: o lar norte-americano médio não é mais rico hoje do que era há trinta anos.”
Posto isto, é assim tão surpreendente que o lema “Make America great again” seja eficaz? Sem esperança no futuro, o passado parece mais risonho: um tempo em que tudo parecia melhor, em que havia mais liberdade, mais segurança, mais confiança, mais esperança. Acima de tudo, e ao contrário do que ouvimos repetidamente durante a recente campanha eleitoral, a política democrática assenta fundamentalmente no modo como percecionamos a realidade, como nos sentimos em relação à realidade: até podemos ter condições materiais incomparáveis, mas se sentirmos que não há esperança, a relva parecerá mais verde do outro lado. E neste sentido, a angústia económica pode importar mais do que a realidade económica, o mesmo é dizer que o futuro pode importar mais do que o presente.
Como diz Mounk, numa lição importante para compreender os nossos resultados eleitorais:
“Tudo isto sugere que a ligação entre desempenho económico e estabilidade política seja bastante mais complicada do que em geral se acredita. Não são necessariamente os indivíduos mais pobres da sociedade que se viram contra o sistema político; em parte, porque são eles os que mais dependem dos benefícios que esse sistema lhes dá. Nem são necessariamente as pessoas que tenham sentido pessoalmente a calamidade económica. São antes os grupos que têm mais a recear: os que ainda vivem com conforto material, mas receiam profundamente que o futuro não os trate bem.”