Mariana falou-nos da angústia da avó quando recebeu uma carta do senhorio, há cerca de dez anos.
Mariana tem um pai de noventa anos, teria então entre setenta e cinco e oitenta, portanto, a ser essa a avó, teria por volta dos cem anos.
A mãe de Mariana tem menos vinte anos, teria então entre cinquenta e cinco e sessenta anos, portanto, a ser a outra avó, teria por volta de oitenta anos.
Em qualquer caso, as duas teriam mais de sessenta e cinco anos.
A história que Mariana contou diz mais sobre Mariana que sobre a lei do arrendamento urbano.
Mariana prefere usar politicamente a angústia de uma octogenária a tranquilizá-la explicando-lhe que tendo mais de sessenta e cinco anos, a legislação a protegia de despejos e aumentos excessivos.
Mariana falou-nos várias vezes de um T1 arrendado em Lisboa por 1500 euros.
O meu quase vizinho Cristiano Ronaldo terá comprado uma casa ali no quarteirão ao lado por qualquer coisa como sete milhões de euros.
O preço dessa casa diz muito pouco sobre as centenas de casas que a rodeiam, escolher falar do preço dessa casa para dar uma ideia do preço das casas onde vivo seria uma opção irracional.
Falar do arrendamento para falar da habitação em Portugal é já restringir muito o problema, já que apenas 22% dos portugueses são arrendatários (70% são donos da sua primeira habitação, dos quais, 38% têm um empréstimo para a pagar).
Mas dar o exemplo de um T1 arrendado por 1500 euros quando 70% dos contratos de arrendamento em Portugal dizem respeito a rendas inferiores a 400 euros mensais (30% dizem respeito a rendas inferiores a 200 euros mensais) e apenas 2% dos contratos de arrendamento têm valor a superior a 1000 euros, já me parece do domínio do delírio, uma opção típica de populistas e demagogos.
O que diz mais sobre Mariana que sobre o mercado de arrendamento.
Falou-nos ainda Mariana sobre PPP da saúde e citou, frisando bem que estava a citar, partes dos relatórios do tribunal de contas sobre o assunto.
As citações feitas são aquilo a que se chama “cherry picking” (eu sei que poderia usar a expressão portuguesa e dizer que as citações são escolhidas a dedo, mas parece-me menos expressivo), para dizer o contrário do que verdadeiramente dizem os relatórios citados.
O Observador até fez um fact checking sobre o assunto em que avalia se a frase “Todos os relatórios do TdC dizem que as PPP tinha uma performance pior ou igual ao sistema público.” é verdadeira ou falsa.
Apesar de todas as cautelas de quem escreveu a verificação, a conclusão é absolutamente inequívoca, como sabe qualquer pessoa que minimamente se tenha debruçado sobre o assunto: dizer que o Tribunal de Contas diz que as PPP da saúde têm uma performance igual ou pior que a do sistema público é uma mentira monumental e descarada.
O que me parece mais extraordinário não é que Mariana Mortágua minta descaradamente sobre matérias facilmente verificáveis, uns mais e outros menos, poderá acontecer a qualquer um, de forma mais ou menos involuntária.
No caso concreto, a citação de frases escolhidas a dedo para pôr os relatórios a dizer o contrário do que dizem não deixa margem para dúvidas, é uma mentira deliberada e trabalhada tecnicamente para que pareça fundamentada em fontes credíveis.
O mais extraordinário é que nas dezenas de apreciações sobre o debate em que Mariana faz tudo o que descrevi neste texto, o facto de ser usada uma mentira monumental, descarada, preparada previamente, seja praticamente omitido e quase nada relevado para avaliar a performance de Mariana.
Mais facilmente se encontra quem fale na sua preparação (sim, preparou muito bem a mentira), na sua combatividade (sim, disse convictamente a mentira), que quem diga que neste tipo de debates é inaceitável que se minta descaradamente sobre matérias centrais em discussão.
E isso diz muito mais sobre o jornalismo político dominante que sobre Mariana: ela, como vários outros políticos, usam frequentemente este truque porque sabe que mentir descaradamente é mediaticamente irrelevante, desde que a mentira esteja ao serviço do lado certo.