Seguíamos as quatro, caminhando rua abaixo, absortas pela paisagem verdejante e entusiasmadas com a perspetiva da descoberta de um novo lugar, quando, sem qualquer aviso prévio, se intrometeu no nosso percurso. Foi por todas simultaneamente notada mas apenas por uma profundamente comentada: “Vocês acreditam naquilo de que quando uma borboleta se intromete no vosso caminho é porque alguém que já faleceu tem saudades vossas?”
A ideia não poderia ter parecido mais absurda, quem é que poderia ter saudades minhas?” Pensei. E imediatamente me lembrei da avó. A avó que, na verdade, era bisa. A avó que, na verdade, ainda o é porque me recuso a aceitar que partiu. Porque me continuo a questionar uma e outra vez mais se precisará que lhe compre papa quando me cruzo com as mesmas no supermercado.
Três anos volvidos e, às quartas-feiras de manhã bem cedo, quando a imprevisibilidade do destino (e o infortúnio de um horário com folgas rotativas) me leva a passar pelo consultório de análises, o olhar continua a fugir-me para a porta branca que a avó tantas vezes atravessou e no pensamento formula-se a questão: “Será que a avó já aqui está?”. Mas a avó não está, nem estará mais e por momentos a nossa existência, torna-se em algo ridiculamente disparatado. Se sempre conheci o mundo com a avó cá, quem é que me vai ensinar e convencer do contrário?
A avó tinha noventa e cinco, via mal, e por isso já não fazia croché. A avó ouvia mal e, por isso, transformava facilmente um insulto numa afirmação declarativa:
– És codrelheira! – exclamou a minha irmã.
– São quatro e meia? não são nada, já são cinco! – protestou ingenuamente a avó.
E por falar em quatro e meia, era mais ou menos por essa hora que ela começava a pensar em ir-se deitar. Forreta de gema, a avó poupava até nas horas do dia e não se deixava ficar acordada por muito tempo. Poupava também no papel higiénico e defendia afincadamente que duas folhas deveriam dar para mais do que uma utilização. Esbanjar, esbanjar, ela apenas esbanjava espirros. Dava-os às meias dúzias. E como se aqui achasse pouco a oferta do espirro individualmente, acompanhava-os ainda com um “Deus me ajude”. Já eu esbanjo mais o dinheiro e poupo notavelmente nos espirros. Devia ter saído mais à avó.
A avó andava mal e, por isso, usava bengala. O que em nada a impedia de pintar a fachada da casa sozinha. De bengala numa mão e de pincel na outra, de costas curvadas e com passadas curtas, a avó aperaltou a fachada da casa para regalia dos olhos daqueles que integravam o corpo da procissão do feriado regional. A avó era religiosa e rezava ao Santo António quando nós perdíamos alguma coisa. A avó era religiosa e ensinou-me duas orações que a falta de prática aliada à descrença levaram a cair no esquecimento. A avó era religiosa e não se deixava adormecer sem rezar aos mil e um santos que a sua memória ainda a deixava recordar. A avó era religiosa, acreditava em Deus, já eu, acredito na avó que por aí anda a ter saudades minhas.
E se da avó não se tratasse realmente, como se poderia explicar o facto de, numa nova localização, a mesma borboleta se me aparecer? Apesar de continuar a achá-la uma ideia um tanto ou quanto absurda, cedi e deixei-me levar pelo sentimento prazeroso que é crer que alguém “lá do outro lado” (seja lá isso o que for), tem saudades nossas. A avó estava cheia de saudades minhas e, naquele momento, eu passei a estar cheia de saudades da avó.
A avó que na verdade era bisa, a avó que um dia me pediu para lhe lavar as costas e a avó que me deixou um arsenal de panos de cozinha. A avó que me introduziu ao choro de luto quando parecia impossível não haver mais nenhum choro que eu não conhecesse.
Por mais que me deixe levar pela tristeza e me entregue ao choro, continua a não haver lágrimas suficientes para chorar a sua partida. Talvez com o passar do tempo as memórias se tornem mais escassas, menos vividas e a recordação dela não tenha tanto poder em mim mas, por agora, as lágrimas insistem em escorrer sem cessar. Por enquanto a avó ainda continua aqui e creio que continuará por muitos mais anos. Por enquanto a avó ainda aí anda cheia de saudades minhas e eu cheia de saudades da avó.