No final de mais um semestre lectivo e de quase mais um ano civil, creio que se impõe uma crónica sobre a Escola. A Escola é uma metáfora da sociedade e do mundo. Num tempo em que o grande objetivo da Agenda 2030 é ‘Transformar o Nosso Mundo’, se não formos capazes de mudar a Escola enquanto instituição, não mudaremos nada. De certeza não mudaremos o mundo. O Modelo da Escola está esgotado há já algum tempo e há várias formas de o dizermos: escolas do século XIX, professores do século XX e alunos do século XXI é uma delas.

As escolas, na sua arquitetura bunker introvertida, constituem ilhas ou enclaves e servem como socialização para esse tipo de mundo. A Escola não é um espaço público. Nem de debate aberto, nem de construção de novas ideias. Muito menos um espaço de transformação. É, antes, um espaço de limitação do indivíduo, de disciplina e vigilância: um espaço panóptico que tem a sua genealogia no medo.

Os professores, esse estrato mais baixo da classe alta, numa lógica de socialização de massas, tinha a função ideológica de impor um mundo em que muito poucos mandavam em muitos: um mundo de instituições disciplinares e da subserviência das massas. Para além da subserviência, a Escola fez-se para especializar técnicos e fazer profissionais. Na actualidade um canalizador ou eletricista sem certificação ganha mais que um professor, um médico ou um arquitecto… e um influencer também.

A sociedade de consumo e as suas marcas, assim como os mass media, asseguram na actualidade a socialização de massas; quanto à socialização grupal e personalização, os ginásios, o futebol e as compras, assim como o Insta, os jogos digitais e o discord e outras redes funcionam melhor do que a Escola. Quanto à aprendizagem de uma profissão…, o modelo institucional, no mínimo, na maior parte dos casos é obsoleto.

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Assim, ou se muda a Escola ou a aceitamos como mero ‘semióforo’: um ‘porta-bandeira’ de um outro tempo, um objeto sem utilidade, uma ‘sobrevivência’ antropológica.

Em Portugal, em 2023, a Escola Pública está moribunda; o PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos) trouxe-nos dados alarmantes; jovens foram retirados à força pela polícia de uma Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação por estarem a fazer uma palestra; ativistas climáticos foram considerados meros vândalos ao invés de os obrigarem/convidarem a apresentar seriamente as suas ideias e iniciativas. Já não é certo que a universidade seja a única ou até a melhor instituição para certificar competências. Estudos evidenciaram que o prémio salarial para uma licenciatura caiu para metade numa década, a falta de talento qualificado agravou-se e os professores são os mais envelhecidos da Europa. Percebeu-se também que só cerca de um terço dos 52 mil alunos de todas as faculdades da Universidade de Lisboa vai para as aulas com motivação e que quase metade já consideraram desistir do curso, para além de uma grande maioria não se sentir bem nem física, nem psicologicamente. Por outro lado, há salas de aula que são já palco de confronto entre uma Juventude ‘Chega’ e juventudes da diáspora brasileira e outras.

As escolas básicas e secundárias são quase só extensões do administrativismo e no ensino superior, quais clubes sociais e de prestígio, multiplica-se um exército de ‘convidados’. Como pode a Escola, assim, servir à formação de cidadãos críticos e profissionais capazes da inovação adaptativa que precisamos no século XXI? Temos obrigatoriamente de olhar para o lado e ver como casos como a Forest School ou a Escola 42 podem configurar o futuro da Escola. Mas, claro, que para tal a Transformação tem de ser a agenda real.

Sobre a Sala de Aula e a (im)possível transformação do mundo, uma professora que, entretanto, desistiu do ensino, enviou-me a seguinte narrativa. A.N. partilhou comigo e permitiu-me a partilha.

«O branco rodeia-nos completamente e as luzes são cruas em estruturas metalizadas. Podíamos estar num armazém ou talvez num laboratório. Também poderia ser uma morgue. Seria, de qualquer forma, um lugar propício para autópsias. A luz possibilitava-nos ver de forma clara os interiores dos corpos abertos e seria fácil ver e limpar qualquer eventual sujidade nos intervalos entre tais intervenções.

Temos de estar juntos naquele espaço: é uma espécie de cápsula que durante alguns meses me junta àquele grupo. Depois há de vir outro e depois outro. Há já anos que vivo nesta mentira. Sou a responsável por falar ao grupo e é me concedido um lugar central, mas já sinto há muito tempo que tudo isto é uma mentira. Falo-lhes como se fosse uma projeção, um sonho pois tudo o que me rodeia me desmente no que digo. É uma luta que sinto estar perdida à partida, mas insisto, talvez por mera teimosia de um papel que é já obsoleto, talvez por neurose ou, talvez, porque lá no fundo acredito em milagres: talvez alguma vez algo mude! E talvez algo do que disse ou escrevi sirva essa mudança. Afinal quem sabe dos desígnios do destino!

“É importante a transformação e todos nós somos agentes da mesma: tal será a única forma de termos futuro”. Essa é uma das minhas mensagens. Talvez a mais importante. E, no entanto, quase sempre enquadrado por um olho que me confronta num nível acima de todos nós, perto do teto, são as projeções deste ser que dominam mais que eu aquela cápsula e todos os que ali estão. As projeções são sempre uma mistura da máquina e de mim, não apenas daquela máquina, mas da megamáquina, da qual aquela máquina mais não é do que uma extensão. Todos sabemos isso já, mesmo que não tenhamos uma consciência clara, mesmo que não tenhamos dito ou escrito tal. Aquele é o mundo da megamáquina e o meu papel é reduzido. Luto por ter um lugar, por dizer algo novo, por vezes entusiasmo-me comigo mesmo. Há alguns que me ouvem, que aparentam perceber por vezes que eu digo algo novo. Mas lá no fundo sei muito bem que eu não sou senão uma sombra na projeção da máquina e da megamáquina. De facto, tudo o que digo se não estiver em open access num dos repositórios da megamáquina e, se possível, certificado por alguma indexação, de nada vale. E, e a todo o momento, há sempre algum daqueles que estão ali comigo que é solicitado pela megamáquina e ligam-se de imediato e tudo o mais passa para segundo plano. A megamáquina não se vê e está em todo o lado, mas ali naquela cápsula evidencia a sua presença em função de três elementos: uma caixa negra e o seu emaranhado de fios negros, de facto o único elemento negro ali e a única ligação de informação ao exterior; o olho projetor branco no teto e a projeção em si mesma. Assim, a megamáquina é o elemento central na cápsula.

“Temos de trabalhar em conjunto e para o mesmo propósito: tal será a única forma de termos futuro”. Essa é outra das minhas mensagens. Talvez a mais importante. E, no entanto, todos estão de costas uns para os outros, todos virados para mim e para a projeção da megamáquina. É óbvio que não é suposto trabalharem uns com os outros! Não é esse o programa arquitetónico que se objetifica no espaço capsular e o ‘rigor arquitetónico’ impede-me de propor qualquer alteração. Não é que não tivesse tentada. Sim tentei nos poucos casos em que a sala de aula tem mobiliário amovível. É necessário solicitar autorização e alterar a disposição dos microelementos capsulares que confinam cada um para a sessão para que, na sessão seguinte, voltemos a encontrar a disposição original para que fiquemos obrigados a repetir o processo. Sim, é possível criar uma excepção arquitetónica, desde que se entenda claramente ser uma excepção. Ora, trabalhar em conjunto não pode ser uma exceção. E se for uma excepção não teremos futuro. Assim, limito-me a dizer algo que a prática contraria no imediato. Não é certo se o ‘rigor arquitetónico’ está ao serviço da grande máquina ou, simplesmente, ao serviço da inércia do poder da instituição.

“É necessário vivermos como parte da natureza, num ecossistema multiespécies: tal será a única forma de termos futuro”. Essa é outra das minhas mensagens. Talvez a mais importante. E, no entanto, olhando em volta, a cápsula apenas comporta seres humanos e máquinas. Não há água, nem solo visível. Umas areias seriam já entendidas como falta de limpeza! Não há por isso qualquer sombra de outro qualquer ser vivo em toda a cápsula: nem sombra de plantas ou qualquer tipo de animais. Acidentalmente pode aparecer uma ou outra mosca, mas mesmo tal é raro. É de facto um ambiente limpo, um laboratório de análises clínicas, uma enfermaria, eventualmente uma morgue!

Em cada novo grupo que me confronta, procuro com as minhas palavras contrariar as mensagens que a cápsula, a que todos estamos confinados, nos transmite. Se a cápsula for a metáfora do futuro estamos condenados a um mundo asséptico de humanos e máquinas, sem solo e sem água. Como tal é uma contradição em si mesmo, a sobrevivência será a das máquinas! Ainda assim, continuo o meu trabalho de Sísifo, sempre na esperança de que as minhas mensagens possam um dia ser mais fortes que a cápsula que nos confina e que alguém ou algo possa mudar!”