Ensinavam os antigos que em família não se falava de três coisas: política, futebol e religião.

Não referiam ordem particular, mas nós intuíamos que a pior das conversas seria sobre religião, seguindo-se a política, com o futebol no fim. Afinal, este não passava de um jogo (desporto, diziam) e apesar dos afectos que nos ligavam a Porto, Sporting e Benfica (só havia estes clubes em Portugal), o futebol não acirrava os ânimos como as discussões em torno de papismos, judaísmo e ateísmos ou sobre a situação (política, bem entendido).

Os tempos mudaram e, com eles, os tabus à mesa da família. Melhor, a ordem da sua inconveniência.

O futebol tornou-se de longe o assunto menos recomendável. Servido pela comunicação social em doses cavalares, disseminado nas redes sociais como um vírus incurável, as dissensões entre os adeptos do (adivinhem) Sporting, Benfica e Porto tornaram-se uma insuportável maleita, que afecta os mais clarividentes e decentes dos seres humanos.

Nunca como hoje o mundo do futebol foi tão malsão e infrequentável. Nunca como hoje se tornou tão perigoso ir à bola. Nunca, como hoje, se ouviram tantas inanidades proclamadas pelos arautos da clubite, muitos dos quais têm idade, sabedoria e, supor-se-ia, experiência, para não defender o seu clube contra a razão, os factos, o bom senso. E a moral, claro.

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É que por muito que o futebol continue a ser o melhor jogo do Mundo; ainda que a paixão pelos clubes que escolhemos, quase sempre do berço ao caixão (passe o exagero), tenha assumido uma dimensão identitária, através da qual também nos definimos e reconhecemos; mesmo se o fenómeno é universal, ou quase, uma coisa sei:

Não vale tudo. Não pode valer tudo.

Faço então a minha declaração de interesses, expondo-me ao desgosto dos leitores: sou do Benfica. Sócio de quatro dígitos, adepto desde o berço (não, não é exagero). Recordo com saudade o tempo do velho Estádio, glorioso nos seus 120 mil assentos de betão, lembro uma época em que ganhávamos três em cada quatro campeonatos, em que dávamos cartas na Europa, em que o Benfica era um clube prestigiado e respeitado.

Tinha orgulho em dizer que era do Benfica.

Ora hoje, ao assistir ao triste espectáculo da chamada e-toupeira, sinto vergonha.

Entendam-me os benfiquistas, se quiserem, e só os que o entendam, com sinceridade, me interessam: não vou hoje cuidar dos pecados dos outros, de apitos dourados e quejandos, porque isso não é hoje para aqui chamado. Hoje é connosco e com a vergonha que sentimos – e quem não sentir não é verdadeiramente benfiquista, porque sê-lo implica honra e orgulho, não fanatismo e querer ganhar a qualquer custo.

Não sei, ainda não sei e não sei se alguma vez o saberei, se a acusação contra o meu clube é verdadeira ou não. Nem sei se há um nexo de causalidade entre os factos imputados a funcionários judiciais e do Benfica e aquilo a que se chama, na linguagem tão colorida do futebol, “a verdade desportiva”. Mas aquilo que já sei, por o ter ouvido assumido por muitos desses funcionários e até por responsáveis do clube, é suficiente para dizer Não.

Não, este não é o meu clube, porque o meu clube não pode agir assim. Dir-me-ão que no passado aconteceu o mesmo e eu respondo que os tempos mudaram. Que do “parece”, “diz-se”, “supomos” desses tempos, encaramos hoje a responsabilização, a consciência de que não vale tudo, a exposição completa, o conhecimento cabal e documentado, ouvimos e lemos e vemos os factos, os actos, os comportamentos que nos envergonham – e não podemos calar.

Antes, era legítimo duvidar. Hoje, os factos, actos e comportamentos são patentes, visíveis, inquestionáveis.

Não. O clube valente e lutador que me fazia ir a correr comprar o desportivo nas manhãs seguintes às competições europeias, que me tinha de xirico colado ao ouvido a escutar relatos narrados a milhares de quilómetros de distância, não age assim. Não pode. Não deve. E se já agiu, pois então culpa minha por não ter na altura reagido, talvez por desconhecimento, talvez por ocasional desinteresse, talvez por não ter onde fazer ouvir a minha voz.

Não, os benfiquistas não aceitam que o seu clube lutador se torne num clube corruptor.     Não, não dei a nenhum dos dirigentes do Benfica, e muito menos aos seus funcionários ou agentes, qualquer mandato para agirem deste modo.

Sou do Benfica e isso me envaidece: com que direito alguém, cujo nome nem fixei, em meu nome, sócio nove mil e tal, filho e neto de adeptos, contacta funcionários judiciais, obtém informações por via ilícita e, talvez, mas só talvez (é boa altura para incluir o advérbio da absolvição) alegadamente desvirtua a “verdade desportiva”?

O presidente do Benfica não sabia? Admito, mas isso é admitir incompetência ou desinteresse. Num ou noutro caso (caso soubesse), o presidente do Benfica tem de saber que não agiu como benfiquista. A chama imensa, a luz intensa, o orgulho da águia a voar.

Não, senhores dirigentes, senhores funcionários, ninguém vos encomendou essas acções. E se se provar, de sentença passada – e espero que a justiça, por uma vez, funcione em tempo, funcione bem –, que o meu clube, este presidente, estes senhores, agiram contra a consciência do colectivo dos benfiquistas, eu espero também que justiça seja feita.

Só assim poderemos restaurar a honra e o orgulho muito nosso de nos dizermos do Benfica.

Doer-me-á tanto como doerá a milhões de benfiquistas. Duvido que doa aos culpados dessa sentença e da vergonha que hoje sinto.

Eles, desculpem, não são do Benfica.