A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP (e outras Comissões como complementos) é já um dos fenómenos sociológicos mais importantes do ano. Pela primeira vez, em 50 anos de democracia, percebemos de forma mais clara como o Estado (não) funciona. A confusão entre partido, governo, Estado e setor empresarial público tem servido para se comentar “os vários tipos de Estado e o estado a que chegámos”, como dizia Salgueiro Maia. Mas esta CPI também, ou acima de tudo, retrata-nos o país. Ou seja, é o que se pode chamar uma janela indiscreta ou um “caso de aprendizagem” para todas as demais organizações: a actuação do governo deixa entrever as cliques que as dirigem; já o parlamento evidencia os que defendem a clique no poder e os que a questionam. E, se assim é, precisávamos provavelmente de uma espécie de CPI para todas as organizações.

Qual é então o país que se dá a ver nesta janela indiscreta?

Existe um “chefe” e um poder, assim personificado (um patriarcado), e uma clique que serve, a todo o custo, de protecção do “chefe” como figura máxima. Há toda uma hierarquia de chefes para este propósito. Nas chefias, como na religião, ou se acredita cegamente ou então é-se votado ao ostracismo. A actuação das chefias legitima-se por si própria sendo a (i)legalidade e a falta à verdade mera “minudência”. Acresce que culturalmente é inimaginável questionar as atuações dos “chefes”, nem há mecanismos instalados para tal fim.

O poder é sustentado por grupos, cliques ou segmentos e a pertença ao grupo surge como a primeira, e porventura única, norma ou lei. A sociedade é, assim, clânica. As relações entre a clique dirigente fazem-se por um controlo restrito de comunicação e todos os que não fazem parte da clique são meros subalternos: condenados a “zés-ninguém”. O controlo e vigilância são elementos-chave: cada “chefe” intermédio e até, por vezes, seguranças e recepcionistas não estão lá senão para defesa do interesse do “chefe” máximo e da sua clique.

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O fechamento, a falta de transparência e a opacidade dos processos são a norma. A burocracia enquanto processo racional e escrutinável de gestão no cumprimento da lei é uma mera ficção. As chefias convivem bem com o ocultamento da verdade, havendo uma aceitação dos prevaricadores sem ética, desde que pertençam ao seu grupo. Em relação aos críticos e denunciadores de potenciais situações irregulares, ou mesmo ilegais, as chefias preferem o apaziguamento ou mesmo até o sacrifício sem escrúpulos daqueles, pois de qualquer forma deixaram de pertencer ao grupo, sendo, portanto, descartáveis.

Os “processos dilatórios”, os “discursos vazios” e o do “bode expiatório” são alguns dos mecanismos tácticos entre outros. Os processos dilatórios são uma possibilidade de os problemas saírem de agenda. Os discursos vazios fazem parte da performatividade da burocracia, meramente ao serviço do poder e não da produtividade. Por fim, aquele que é entendido como traidor do grupo é construído como “vilão” e transformado em bode expiatório e exemplo para os demais. O sistema instalado é, por isso, de prepotência e abuso de poder que tem como contra face óbvia a desconfiança, o medo, o desânimo aprendido e, mesmo, a desesperança.

Terão, assim, 50 anos de Democracia resultado afinal numa sociedade de subalternos controlados por instituições cuja burocracia (aparente) não é senão uma roupagem de pertença clânica dominada por “chefes” personalistas para quem a lei e a verdade são tão só grandemente um adereço? Se aceitarmos esta infeliz distopia, seria necessária, de facto, uma Comissão de Inquérito para cada instituição em Portugal: câmaras municipais, universidades, hospitais, etc.

Esta janela indiscreta apresenta-nos, assim, um país com chefes a mais e liderança a menos, com burocracia a mais e racionalidade burocrática a menos, com cliques a mais e cooperação a menos! Este Portugal será o resultado da última geração que, nascida ainda em ditadura, transformou as instituições e o Estado num simulacro da aldeia de onde vários ainda vieram? Resulta antes dos próprios 40 anos de ditadura? É mais estrutural ainda, e resultado de um êxodo rural tardio e, portanto, de uma ruralidade dominante, com iliteracia e falta de competitividade, associadas a um Estado-regedor com “cabos de ordens”? Vai ainda mais para lá historicamente da relação rural-urbano, implicando a dicotomia entre o poder da terra (camponeses) e o poder do mar (comerciantes); ou mesmo até entre portugueses de dentro e portugueses de fora ou “estrangeirados”? Será isso tudo e ainda a necessidade de um alinhamento feliz como o que terá estado na origem da renovação das elites com D. João I e, como lhe chamou Camões, da oposição entre a transformação pela “Ínclita Geração” face à resistência dos “Velhos do Restelo”?

Quem e como se pode mudar tudo isto agora? Uma sociedade de subalternos, de medos, de desânimo aprendido e desesperançada, antes de mais interioriza a violência (em doenças e acidentes, em violência doméstica, em acidentes rodoviários, em suicídios e homicídios, etc.). As contestações que temos vindo a assistir (dos professores, dos enfermeiros, dos funcionários judiciais, dos trabalhadores da CP) são despertares admiráveis, mas não é certo que sejam capazes de corporizar uma mudança forte. O poder do voto pode levar a mudanças políticas, as quais, infelizmente, não é nada claro que sejam num sentido positivo. A administração central deveria ter um planeamento para a mudança, um planeamento da transformação e transformacional (capaz de fazer ajustes em cada momento). Mas, para isso, seria preciso um verdadeiro comprometimento com o planeamento e com a mudança: dois grandes problemas em Portugal.

A Administração Pública já usou vários termos para referir esse planeamento para a mudança nas suas diversas secretarias de estado e ministérios: mudança… reinvenção… digitalização e modernização e reforma…. inovação… transformação. Apesar de se tratar de palavras que escondem mais do que o que revelam, parecem indicar um percurso que vai do top-down (reforma) para uma lógica mais bottom-up (inovação e transformação). A contestação de rua vai desde os salários e carreiras a uma noção de “respeito” e de salvar as instituições. Salvar as instituições implica na actualidade a coragem de as transformar com rapidez, através de processos vários:

Mudanças de comportamentos pela mudança da tecnologia e pela capacitação e valorização da inovação;
Mudança organizacional pela mudança legislativa, pelo planeamento colaborativo e pela governança em rede;
Mudança processual pela mudança no recrutamento, na avaliação de desempenho e avaliação de políticas.
Algumas destas mudanças estão já em curso em certos sectores, mas é necessário serem escaladas (scale-up) para toda a Administração Pública. Ou seja, e de uma forma simples, temos de deixar de vez uma perspetiva paroquial em relação às organizações, às principais instituições nacionais e, mesmo, ao Estado. Portugal não pode mais ser gerido como uma “aldeia grande”, grandemente a partir da “aldeia lisboeta”, e em que cada instituição ou mesmo cada organização tem o seu pequeno chefe.