Na quinta-feira passada, os espanhóis testemunharam algo insólito na política partidária. Isabel Díaz Ayuso, militante do Partido Popular e Presidente da Comunidade de Madrid, declarou andar a ser perseguida pela Direcção do seu próprio partido. Que membros da Direcção andavam a insinuar aos meios de comunicação que ela estaria envolvida num esquema de corrupção, por uma encomenda de máscaras sanitárias em que o seu irmão teria cobrado uma comissão ilegal. Acrescentou ainda que a equipa que gere o PP nacional teria ordenado espiá-la e aos seus familiares mais próximos e que se sentia traída pelo seu próprio partido que lhe fazia o que a oposição não ousava. Ayuso não negou que o irmão tenha recebido dinheiro pelo fornecimento de material sanitário, pelo contrário, deu a entender que isso seria normal dada a sua actividade profissional no sector. Apenas salvaguardou a legalidade de todo o procedimento e a sua ignorância dos pormenores do mesmo, como costuma suceder nestes casos.

As acusações à Direcção do seu partido foram demasiado graves para ser ignoradas e esta, pela mão do número dois da hierarquia, Teodoro García Egea, saiu a público reconhecendo e reafirmando-se nas acusações. Disse não poder ficar impávida a Direcção perante a gravidade e potencial ilegalidade dos actos da Presidente da Comunidade. Acrescentou Egea que abriam um processo interno a Ayuso já que esta levava vários meses evitando responder à acusação. Que o fazia porque pretendia limpar o Partido de toda a mácula de corrupção que o pudesse afectar e dada a insistência de Díaz Ayuso em pedir a antecipação das eleições o PP de Madrid que, em caso de vitória, lhe daria um alto cargo dentro da estrutura (algo que ainda não possui). Acrescenta que esta insistência teria como propósito blindá-la contra as acusações de corrupção uma vez passasse a fazer parte da cúpula do PP, daí a importância de o impedir.

O intercâmbio de acusações graves a plena luz dos focos mediáticos e a virulência das declarações foi tal que toda a gente percebeu que não havia volta atrás. A atenção de políticos, jornalistas e opinião pública virou-se totalmente para este escândalo. Durante os dias seguintes, o que foi sucedendo nas províncias orientais da Ucrânia e no tabuleiro de xadrez mundial da diplomacia das grandes e pequenas potências, que alguns se apressam em considerar o início da terceira guerra mundial, em Espanha não passou de ruído de fundo. O que toda a gente queria saber era o que iria acontecer em Madrid, particularmente entre os escritórios da Calle Génova, onde está a sede nacional do Partido Popular, e a Plaza del Sol, onde se encontra a sede do Governo Regional de Madrid.

Ayuso convocou uma conferência de imprensa para o dia seguinte, onde os responsáveis pelas áreas de Economia, Saúde e Justiça (este último acabou por não comparecer) do governo da região prestariam esclarecimentos sobre o caso. Antes, durante a manhã de sexta-feira, Pablo Casado, presidente do Partido Popular, iria romper o silêncio numa entrevista aos microfones do programa de Carlos Herrera, da cadeia de rádio COPE, a de maior audiência entre os votantes do PP. Apesar de alguma reticência dos barões do partido em relação à forma impetuosa e suicida como a Direcção abordou o caso, pode afirmar-se que, na quinta-feira à tarde, a opinião de que a expulsão de Ayuso do partido era practicamente um trâmite era quase unânime. A dúvida era o tamanho do estrago eleitoral que esta expulsão poderia causar se Ayuso se apresentasse em Madrid com marca própria ou dentro de outro partido. VOX e Ciudadanos, para não falar do próprio PSOE, esfregavam as mãos de contentamento. O primeiro porque antecipava uma potencial autoestrada eleitoral para continuar a crescer e o segundo porque viu uma corda de salvação a que se agarrar na queda livre em curso. Surgiu uma convocação para uma manifestação de protesto em apoio de Ayuso frente à sede do partido em Génova para o domingo seguinte. Nesse momento a contenção de danos era muito provavelmente a única preocupação na cabeça da maior parte dos barões e altos cargos do partido.

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Para quem não a conheça, Ayuso é um fenómeno de popularidade não só em Madrid, mas em todo o país. Depois da vitória esmagadora nas eleições para a Comunidade, em que foi reconduzida no cargo com uma quase maioria absoluta, com mais deputados que toda a esquerda junta, o que lhe permite governar confortavelmente ainda que em minoria, passou a ser vista por muitos à direita como a maior esperança de combater o governo socialista de Pedro Sánchez. Após a primeira onda de Covid-19, quando a cidade de Madrid foi atingida com a maior incidência do país, em que a Comunidade entrou em lockdown, o governo da Ayuso decidiu-se por uma política muito mais aberta que todas as outras regiões do país. Ayuso sofreu a censura (e o boicote) não só do Governo central, mas inclusivamente dos governos regionais onde o próprio Partido Popular governava. Durante as férias ou fins-de-semana com pontes, as outras comunidades fechavam as suas fronteiras aos madrilenos que queriam escapar à rotina, com o beneplácito do governo central que chegou a declarar proibições de deslocamento, modificando as regras ou os dados sanitários para justificar as suas decisões. E Madrid reinventou-se abrindo os teatros e licenciando esplanadas, atraindo não só os habitantes locais à diversão como inclusivamente turistas do resto da Europa, que procuravam o ócio que os seus países de origem lhes negavam. Enquanto os outros governos locais fechavam negócios, faziam lockdowns, ou activavam os certificados de vacinação para se poder aceder aos espaços públicos, Madrid manteve empregos e negócios. Permaneceu, apesar das restrições que lhe impunha o governo de Espanha, orgulhosamente aberta ao público. E o público agradeceu nas urnas.

Na sexta-feira as partes em conflito avançaram com a artilharia pesada. Aquilo que se pôde estabelecer como facto reconhecido por ambas as partes é que o irmão de Isabel Díaz Ayuso, de seu nome Tomás, recebeu uma quantia de dinheiro pela intermediação da compra de uma encomenda de 250 mil máscaras FFP2 e FFP3 por parte da Comunidade de Madrid em Abril de 2020, no princípio do pânico da pandemia, algo que não é necessariamente ilegal, já que existe uma contraprestação de serviço a um preço que, aparentemente, se pode considerar de mercado. Pablo Casado arriscou o confronto sem poder provar que existia ilegalidade, julgando que o argumento do eticamente reprovável seria suficiente. A fronteira entre o apelo emocional e a demagogia é ténue. Casado cavou a sua própria sepultura quando questionou na COPE “se mais além da legalidade, se pode entender que, quando em Espanha morriam 700 pessoas por dia, se pode fazer um contrato com a irmã e receber 300 mil euros por vender umas máscaras?”

A suspeita remontava a Setembro último. A Casado diz que lhe chegou informação fiscal e bancária do irmão da Presidente que indiciava más práticas e confrontou Ayuso então. Fica a questão de porquê esperou tanto tempo para actuar publicamente se a acusação era tão grave. Ayuso corrobora as datas, mas a partir daqui as histórias divergem. Ayuso diz que Casado lhe disse que a informação tinha chegado directamente da Moncloa (isto é, do governo de Espanha). Se assim foi, os níveis de idiotez são preocupantes porque a direcção do Partido Popular actuou baseada na informação prestada pelo mesmíssimo Sánchez, o único que tem mais interesse em fazer cair a líder madrilena que eles, e pouparam a imagem do Presidente do Governo e do PSOE ao desgaste de ter de atacar frontalmente Ayuso. Não descartemos esta hipótese, ainda que Casado a negue. Quando questionado no programa da manhã da COPE sobre a proveniência da informação, enrolou-se bastante para apenas reconhecer que, pelo tipo de informação que lhe chegou, estava perante “documentos oficiais”. Não ficou bem na fotografia.

Justiça seja feita, a direcção do Partido não actuou, ou tentou não actuar, exclusivamente com base em “documentos oficiais” e decidiu investigar por conta própria. Só que isto apenas serviu para agravar a situação de Casado que, depois de acusar sem fundamento para tal, ainda teve que justificar o facto de ter andado a espiar, ou pelo menos tentado espiar, Ayuso e a sua família. Admitindo que a recusa de Isabel Diaz Ayuso em dar mais explicações que um lacónico “perguntei ao meu irmão e tudo é legal” não tenha ajudado a acalmar as suspeitas de Casado, isso não justifica a imprudência insinuar aos meios de comunicação suspeitas contra a Presidente da Comunidade de Madrid, em particular porque das possíveis diligências não parece ter resultado a obtenção de provas credíveis. Quando os responsáveis da Comunidade de Madrid responderam que o irmão da Presidente da Comunidade de Madrid, um profissional do sector há 35 anos nas palavras da própria, tinha recebido não 286 mil euros como alegava a Direcção do partido, mas 56 mil euros pela entrega de 250 mil máscaras (por um montante de 1,5 milhões de euros, um preço razoável nessa altura) num momento particularmente complicado da pandemia em que o material sanitário escasseava por todo o mundo, que esta comissão não foi paga pela Comunidade mas pela empresa, Priviet Sportiv de seu nome, a quem se comprou o material e que isso não foi feito em conceito de comissão de intermediação mas como contrapartida de diligências na importação do material da China, toda a argumentação de Teodoro García Egea e de Pablo Casado caiu como um castelo de cartas. Repare-se que a resposta não nega o fundamento das acusações, até porque a defesa de Ayuso não apresentou nenhum documento a corroborar a sua versão. A pergunta de se existiu corrupção é aquela que a maioria das pessoas quereria ver esclarecida, mas dificilmente verá. Em política a resposta costuma ser que o que parece é. Se parecer que Ayuso é culpada, então será corrupta e se parecer que não, Casado ou o próprio PP se ele não abdicar, têm os dias contados.

A partir do momento em que Ayuso pareceu inocente a guerra estava perdida, particularmente porque, não tendo o apoio da opinião pública, a Direcção não contava com apoios suficientes fora do seu círculo mais íntimo e de um ou dois meios de comunicação para encetar uma guerra suja. O apoio de Pedro J. Ramírez, o outrora todo-poderoso director de Diario 16 e El Mundo, e agora do mais modesto El Espanhol já não tem o peso de antes e provou ser muito insuficiente. E sem esse apoio de Partido e meios não é possível continuar a guerra suja de acusações e insinuações constantes necessária para derrotar Ayuso. No fundo, existe uma infinidade de novas acusações que podem ser formuladas à medida que uma pessoa se defende das anteriores. É por isso que quando alguém se vê envolvido num caso judicial não só é a acusação quem tem que demonstrar a culpa, como o tem que fazer em relação às acusações específicas que faz e não em relação a outras que possam ir surgindo. Na política essa regra não se aplica, pelo que o facto de Casado não ter insistido nas acusações indicia que nunca dispôs de informações complementares que corroborassem as suas suspeitas e estas não passavam de um bluff monumental que caiu logo que Ayuso decidiu montar um contra-ataque. Sábado amanheceu com Casado e Egea em claro recuo, dando por fechado o expediente após considerar válidas as poucas justificações que a equipa de Ayuso deu. No domingo, a comparecência de mais de 3000 pessoas diante da sede do Partido, naquilo que se antecipava que fosse uma jornada de protesto, pareceu mais o cortejo fúnebre do maior partido da oposição, tal era a quantidade de pessoas que ali se deslocaram só para dizer que deixariam de votar no PP. Algumas sondagens, com a pouca fiabilidade que se lhes reconhece ultimamente, corroboram esta ideia dando por adquirida a ultrapassagem de VOX ao PP nas intenções de voto.

Só o tempo dirá se o PP pode recuperar do monumental ridículo a que se prestou a Direcção do partido. A conjura de Casado, Egea e companhia passará à história da política espanhola como uma das manobras políticas mais embaraçosas alguma vez vistas. O Golias da Direcção política de um partido que, como todos os partidos, é uma estrutura piramidal de obediência férrea ao líder em cada momento, foi derrotado pelo David de uma militante, sem cargo formal no aparelho, que terá agora que encetar uma longa luta nos tribunais para demonstrar a sua inocência, com todas as consequências políticas que isso acarreta de desgaste político para o PP. Pablo Casado será recordado como um arrivista, bem-falante e com boa imagem, que conseguiu trazer para a ribalta o jogo sem substância da política das juventudes partidárias e julgou que isso seria suficiente para se apresentar como alternativa de governação.

Para fechar a ferida, os altos cargos do PP procuram agora eleger para o cargo de Presidente do Partido a Nuñez Feijóo como solução de consenso. Procuram no histórico presidente da Galiza recuperar a auctoritas, dignitas e gravitas perdida com este episódio. Curiosamente Feijóo representa a antítese de Ayuso muito mais que Casado, cujas consignas políticas, verdadeiras ou oportunistas, eram muito mais próximas às da Presidente de Madrid, algo que só evidencia ainda mais a inépcia do já practicamente ex-presidente. Será interessante ver como é que a convivência entre Ayuso e Feijóo se vai desenvolver. De momento o partido apostará por tentar ser uma coisa em Madrid e outra na Corunha, até porque na prática o que dá mais votos é ser muitas coisas para muita gente. Mas, neste caso, passa por manter em equilíbrio o antagonismo entre o conservadorismo das medidas da ditadura sanitária para proteger o eleitorado mais idoso, de que Feijóo é um dos defensores mais destacados, e o liberalismo da abertura da sociedade que reclamam as gerações mais jovens e as pessoas mais empreendedoras de uma cidade vibrante como Madrid, das que Ayuso se tornou líder inquestionável.