No antigo anterior, falei da plataforma emitida pela Convenção do Partido Republicano de 2024. Para muitas pessoas pró-vida, essa plataforma ficou muito aquém daquilo a que o Partido Republicano se compromete durante vários anos com os direitos dos nascituros face a tentativas de lhes retirarem oportunidades de vida. Também expliquei (ou tentei explicar) que uma possível falta de clareza na plataforma a esse respeito poderá ter sido um reflexo de posições associadas à jurisprudência norte-americana que se identificam com uma certa interpretação do federalismo. O documento final da plataforma pode ir de encontro à tomada de posição de reputados conservadores como o Professor John Yo. Segundo esta postura, o governo central dos EUA deve lidar com o aborto a nível nacional de uma forma mais modesta do que a tentativa de alcançar uma lei do aborto a ser aplicada uniformemente a nível nacional, transpondo o ordenamento jurídico de cada um dos cinquenta estados dos EUA. Neste artigo, direi que os norte-americanos têm mais que se preocupar com as posições de membros destacados e influentes do Partido Democrata do que propriamente o conteúdo da plataforma da Convenção do Partido Republicano. Centrar-me-ei em Joe Biden, Kamala Harris e Javier Becerra, três pessoas que têm um historial muito desfavorável no que toca a conciliar o possível desespero de uma mulher grávida com o direito à vida de seres humanos cuja oportunidade de nascerem e de usufruírem da vida pode ser retirada de forma unilateral.

Em Março deste ano, Kamala Harris visitou uma instalação da Planned Parenthood no Minnesota, o primeiro estado a implementar leis pró-aborto depois do acórdão Dobbs. Essa legislação do Minnesota declarou o aborto como um direito fundamental, o que permite a sua prática até aos nove meses de gravidez. Mas isto não foi tudo. Um segundo documento legal (bill) acabou com o período de espera de 24 horas entre o pedido e o acto, permitiu o financiamento do aborto com dinheiro dos contribuintes e revogou a proteção anteriormente prevista na lei estadual dada às crianças nascidas depois de um aborto falhado. Quem era o Governador do Minnesota que, nessa altura, assinou essas duas leis? Tim Waltz.

Durante o seu mandato como senadora, Harris votou contra um projecto-lei promovido pelo Senador Lindsay Graham, o Pain-Capable Unborn Child Protection Act. Esse projecto-lei teria providenciado proteção às crianças que estivessem no útero da mãe até às 20 semanas. Ela votou igualmente contra o Born-Alive Abortion Survivors Protection Act”, um projecto-lei promovido, em 2019, pelo Senador Ben Sasse, de Wisconsin. Esse projecto-lei teria exigido aos médicos que fornecessem cuidados a crianças que sobrevivam a procedimentos abortivos.

Harris também aproveitou o seu tempo no Senado para pressionar pessoas pró-vida a violarem a consciência de milhões de norte-americanos. Isso foi visível nomeadamente no apoio que ela deu a legislação ameaçadora da liberdade religiosa. Foi a patrocinadora do Do No Harm Act, introduzido no Senado a 28 de Fevereiro de 2019, que teria proibido a aplicação do Religious Freedom Restoration Act de 1993 a “leis federais específicas ou à implementação de tais leis”. Portanto, o Do No Harm Act permitiria que “qualquer agência, departamento ou funcionário dos Estados Unidos ou de qualquer Estado” sobrecarregasse “substancialmente o exercício da religião de uma pessoa”, o que implicaria o desaparecimento de proteções contra a liberdade de consciência quanto à prática do aborto.

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A então Senadora Harris também apoiou o Equality Act, patrocinado pelo Senador Jeff Merkley, do estado do Oregon, e introduzido no Senado a 13 de Março de 2019. Esse projecto-lei “define e inclui o sexo, a orientação sexual e a identidade de género” como “categorias proibidas de discriminação e segregação” e expande a definição de “acomodações públicas” em que essa discriminação e segregação é proibida para locais de “exibições, recreações, exercício, entretenimento, encontros e exposições, (…) bens, serviços, programas e (…) serviços de transporte”. Para além disso, menciona explicitamente o dever de intervenção do Departamento de Justiça e proíbe a privação do acesso de um indivíduo “a uma instalação compartilhada, incluindo casa de banho, balneário ou vestuário que esteja de acordo com a identidade de género do indivíduo”. O texto do Equality Act é muito comum a documentos legais intendentes à imposição da ideologia de género, sendo que, neste caso, tratar-se-ia da prescrição dessa ideologia a um dos maiores países do mundo e à maior potência mundial. Além do mais, segundo o United States Conference of Catholic Bishops (USCCB), esse projecto-lei: exigiria aos contribuintes que financiassem interrupções da gravidez, até antes da vigésima semana de gestação por razões que não a saúde da mulher ou doença fetal; “forçaria médicos e hospitais a realizar abortos mesmo contra a sua própria consciência ou crença”; “requereria a todos os empregadores de mais de catorze empregados, mesmo de organizações religiosas, a fazer cobertura dos abortos nos seus planos de seguro de saúde”. Pressupõem-se estas implicações até pela redefinição de “discriminação segundo o sexo” que o Equality Act propõe.

Enquanto Procuradora-Geral da Califórnia, Harris tentou obrigar centros de parto ou de gravidez pró-vida (comummente chamados, nos EUA, de “crisis pregnancy centres”) a anunciar o aborto. Em 2015, foi copatrocinadora do Reproductive FACT Act e celebrou a sua entrada em vigor, após assinatura do então Governador Jerry Brown. Esse projecto-lei exige às “clínicas e a outras instalações que fornecem planeamento familiar ou serviços relacionados com a gravidez que forneçam avisos específicos aos clientes”. A National Institute of Life and Family Advocates (NIFLA), uma organização de caridade norte-americana, colocou Harris em tribunal (ver acordão NIFLA vs Harris (2016)) pela sua relação com a parte da lei estadual que impõe, precisamente, o dever de publicidade de serviços de aborto financiados pelo erário público a centros de gravidez ou de parto pró-vida. O Supremo Tribunal Federal dos EUA acabou por dar razão à NIFLA com argumentos no âmbito da Primeira Emenda (liberdade de expressão, religiosa, de associação e de imprensa) da Constituição dos EUA.

Através do canal CBS, conseguimos saber que Harris pensa que proteger bebés sobreviventes de abortos é “extremo” e que representa um “retrocesso nos direitos reprodutivos na América”. Recordemos que, quando o Born-Alive Abortion Survivors Protection Act foi a votos, no Senado, em Fevereiro de 2020, a Senadora Kamala Harris foi uma dos 41 senadores a votar contra o projecto-lei. Durante alguns anos, foi precisamente devido à oposição dos Democratas no Congresso que nenhuma legislação a exigir que bebés que cheguem a nascer depois de tentativas de aborto recebam os mesmos cuidados que os outros bebés que foram dados à luz em circunstâncias mais previsíveis.

Em Abril deste ano, no meio de uma excursão da candidatura presidencial, Kamala Harris defendeu, em Tucson, no estado do Arizona, que o aborto é “o direito mais fundamental de uma mulher”. Depois de demonstrar solidariedade com a Senadora Eva Burch, que admitiu que ia fazer um aborto, Harris dirigiu-se da seguinte forma à audiência: “esta luta é sobre liberdade (…) e a liberdade que é fundamental para a promessa da América. (…) E isso inclui a liberdade de tomar decisões sobre o próprio corpo…”.

Numa altura em que os EUA reconhecidamente enfrentam um desafio demográfico, que passa principalmente pelo envelhecimento e pela queda da natalidade na sociedade americana, Harris revela-se preocupada em “investir em energia limpa e veículos elétricos e REDUZIR A POPULAÇÃO” (tweet de 9 de Agosto de 2024). Num vídeo gravado em 2023, no âmbito da “Fight For Our Freedoms Tour” (“Excursão Lutar Pelas Nossas Liberdades”), podemos ver Harris a sugerir que os jovens não devem ter filhos por causa das alterações climáticas. Para Harris, a minha geração deve abdicar do projecto de parentalidade e de maternidade para salvar o planeta.

Uma semana depois de tomar posse enquanto presidente dos EUA, Joe Biden revogou uma das políticas anti-aborto de Donald Trump que mais podem recordar a posição do antecessor de Biden quanto ao aborto. Com esta revogação, passou a ser mais fácil para as organizações com atividade fora dos EUA obterem o financiamento de que precisam para disponibilizar serviços de saúde “reprodutivos”. A política revogada, conhecida como a “política da Cidade do México” ou “global gag rule” (que se deve traduzir, em português, para “política global da mordaça”), impediu grupos internacionais receptores de fundos dos EUA de realizar, facilitar ou discutir o aborto. Assim, o financiamento federal de organizações como a Planned Parenthood, que tinha sido suspenso por Donald Trump, foi retomada por Joe Biden.

Na segunda semana enquanto presidente dos EUA, Biden ostentou que não pensaria duas vezes em assinar ordens executivas como estas, que iriam “reverter os danos que Trump causou” e o “ataque” do ex-presidente dos EUA “ao acesso de cuidados de saúde das mulheres”, referindo o contexto do combate à pandemia do COVID-19 para parecer mais sério e determinado. Mais tarde, em Novembro de 2021, foi emitida uma reformulação Títle X do Public Health Serve Act (também conhecido como Family Planning Services and Population Research Act) pela administração Biden. Nesse preciso momento, foi revogada a chamada “domestic gag rule” (que poderá ser traduzido em português como a “lei doméstica da mordaça”), que impedia que os beneficiários do planeamento familiar do Title X, financiado pelo governo central dos EUA, tivessem o aborto como escolha ou como referência nos cuidados de saúde.

Para Secretário da Saúde e dos Serviços Humanos, Biden escolheu Javier Becerra. Certo que pode acalmar quem se sente bem em elevar qualquer latino a secretário numa administração governamental nos EUA, mas é duvidoso que alguém como Becerra represente os valores da comunidade hispânica nos EUA. Enquanto procurador-geral do estado da Califórnia, Becerra andou muito em cima da Little Sisters of the Poor, uma ordem de freiras que se dedica, permanecendo num estado de pobreza, aos cuidados dos idosos norte-americanos que não têm possibilidade de recorrer a ninguém para se sustentarem. Impôs-lhe multas estapafúrdias por não aceitar cobrir medicamentos contraceptivos que têm o aborto como efeito nos seus planos de seguro de saúde. Enquanto Trump era presidente, Becerra levou as Little Sisters of the Poor até ao Supremo Tribunal Federal, depois de o então Presidente Trump as ter isentado de qualquer multa por ser aplicável o direito à expressão e prática da sua religião. Felizmente, o tribunal deu um chuto em Becerra e recordou à nação que as freiras tinham direitos constitucionais a serem protegidos. Becerra, assim como Kamala Harris, também tentou obrigar centros de parto e de gravidez, na Califórnia, a fazerem publicidade e a promoverem o aborto, tentando que este fosse mais um dos seus meios de apoio material, emocional e encorajamento a mulheres grávidas. Como já referi acima, tanto Becerra como Harris foram humilhados e as tentativas de forçar estes centros a práticas contrárias à sua ética e ao seu propósito existencial foram frustradas. Pelo menos por enquanto.

Donald Trump, enquanto candidato, e alguns do que lhe são mais próximos podem ser um pouco ambivalentes no que toca à temática do aborto. Mas o legado de Trump e da sua administração deixa claro que há pessoas a quererem tornar a América mais sombria e desvirtuada dos seus princípios fundadores. E Trump e o Partido Republicano não se enquadram, certamente, nesse projecto de destruição progressiva dos EUA. Esse projecto está nas mãos dos seus principais oponentes.