A pergunta é por demais pertinente, por que investimos tanto em tecnologia e tão pouco em humanidade e por que razão as ciências humanas e sociais ficam para trás e não cumprem o seu papel nuclear de “curadores da humanidade” quando as comparamos com as ciências e tecnologias ditas duras?

Os dados estão lançados. O avanço tecnológico é imparável e tudo leva a crer que acabará por conduzir à nossa desqualificação e ao nosso desprendimento emocional como nunca tínhamos experimentado antes. Dos smartphones aos assistentes inteligentes será um passo, dos interfaces cérebro-computacionais aos homens aumentados serão apenas dois passos. E sobre as consequências de tudo isto, sobre o primado da tecnologia, o que têm as ciências humanas e sociais para nos dizer e serenar? Eis alguns tópicos de reflexão que as ciências humanas e sociais devem ponderar a todo o tempo e com todo o cuidado.

1. O mundo do trabalho

O rendimento dissocia-se do trabalho e a remuneração das horas de trabalho. A pluriatividade e o plurirrendimento serão a norma. A tipologia das profissões será bastante alterada. O direito laboral e os direitos sociais associados ao mercado do trabalho sofrerão uma profunda revolução, assim como as organizações sindicais e os movimentos sociais.

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2. O universo familiar

Assistiremos a fortes perturbações no ciclo de vida familiar, o “novo normal” em matéria familiar será muito diversificado e contingente, as famílias como as profissões atravessarão uma fase tumultuosa até poderem estabilizar novamente. Dadas as evidentes vulnerabilidades de todos os intervenientes, as formas de proteção social  e os curadores exteriores à família terão de ser objeto de cuidado estudo e avaliação.

3. O universo da sociedade sénior

A maior longevidade e o envelhecimento ativo dos mais idosos abrirão a porta a muitas soluções novas de interação social e sociabilidade com outros estratos e grupos da sociedade, seja no mundo do trabalho ou no universo familiar, por exemplo, em projetos sociocomunitários e de voluntariado.

4. A emergência de um “quarto setor”, a sociedade-providência

As alterações profundas nos mercados de trabalho, no universo familiar, na sociedade sénior e nas artes e cultura, criam as condições para a emergência de um “quarto setor” onde a comunhão, a solidariedade, o sentido comunitário, o voluntariado e as plataformas colaborativas correspondentes são os fatores decisivos no planeamento e organização da intervenção social integrada, no mercado dos bens comuns colaborativos e nos serviços ambulatórios ao domicílio, em direção à sociedade-providência.

5. A criação de um “rendimento básico garantido”

Intimamente associado ao quarto setor, enquadrado na sua filosofia social de sociedade-providência e um dos seus instrumentos principais, estará o “rendimento básico garantido”. A tipologia do rendimento básico garantido permitirá fixar as suas várias características e as condições muito alargadas em que poderá ser administrado. No final, poderá servir para refletir em profundidade sobre o futuro do Estado providência e a recomposição das suas diversas prestações sociais no quadro da sociedade-providência.

6. Uma ética humana reforçada face à transformação digital

A uberização intensiva de muitas atividades é apenas um exemplo do que pode a nova economia digital face a trabalhadores desprotegidos.  Mas talvez mais assustador seja a eventual futura comercialização dos nossos dados pessoais como uma espécie de “data rendimentos” que cada um de nós pode administrar conforme as suas próprias necessidades e conveniências. Podemos ainda acrescentar a manipulação genética e a edição do genoma humano. Sem a barreira dos valores e dos princípios como reguladores essenciais podemos começar a resvalar profundamente nesta matéria.

7. Uma nova linha divisória entre liberdade e segurança

Sem uma nova ética humana que atualize os nossos valores e princípios, a dosagem recomendada entre liberdade e segurança fica sem medida e regulação apropriadas. A violação de direitos e garantias e a ausência de um contencioso de responsabilidade adequado deixam-nos à mercê do acaso e da necessidade. A sociedade algorítmica do próximo futuro, em nome da nossa segurança, é também uma sociedade sem piedade ou compaixão.

8. Uma nova sociabilidade, um novo normal social

Na presença de máquinas inteligentes e de uma sociedade algorítmica altamente padronizada, está em causa o nosso comportamento pois, aparentemente, ninguém pode ser ineficiente, imperfeito, desligado e anónimo, sob pena de censura e exclusão. Está na altura de as ciências humanas e sociais se preocuparem com um novo normativismo social que nos proteja de sermos um homem-aumentado contra a nossa vontade, quando apenas queríamos ser um homem-normal, feio e imperfeito.

9. Uma nova cadeia de valor, educação, conhecimento e cultura na era digital

Esta será a cadeia de valor mais preciosa na era digital, mas, desta vez, menos verticalizada e hierárquica e mais colaborativa e transversal. A sua importância decisiva deve-se ao modo como contribui para estruturar o cluster digital, em três vertentes fundamentais: a valorização do trabalho imaterial, a promoção da inteligência coletiva e a integração dos efeitos externos na gestão da cadeia de valor.

10. Uma nova geração de direitos humanos fundamentais

As grandes transições deste século – climática, energética, digital, demográfica e socio-laboral – exigirão, muito provavelmente, uma revisão dos direitos humanos fundamentais, seja na sua doutrina e tipologia, funcionalidade e operação, ou aplicação e regulação. Hoje, perante o regresso dos populismos nacionalistas e da geopolítica das áreas de influência, está em causa o multilateralismo liberal que permitiu a sua institucionalização cosmopolita no século XX. Sem o reforço desta retaguarda político-institucional é todo o edifício jurídico-político dos direitos humanos que está posto em causa.

Notas Finais

No plano da epistemologia e da hermenêutica das ciências humanas e sociais, o cientista social parece impotente perante mais um “Momento Polany” em consequência, justamente, da convergência de cinco grandes transições: climática, energética, digital, demográfica e socio-laboral. É, ao mesmo tempo, uma viagem excitante que nos leva da sociedade fronteiriça e disciplinar da ciência moderna até à sociedade global e cosmopolita do ciberespaço e da cibercultura, e uma viagem inquietante que nos leva até aos confins do cibertribalismo e do ciberterrorismo. De um lado, sentimos que uma “economia sem peso” e uma sociedade mais colaborativa e partilhada são uma contribuição extraordinária para resgatar o nosso planeta e a humanidade inteira. Do outro lado, assistimos à eclosão de manifestações hostis no espaço público que, no limite, podem conduzir a autênticas guerras entre cibernautas e entre estes e as corporações mais conservadoras, já para não falar da guerra civil com os guerreiros das identidades locais e territoriais.

No atual contexto, o cientista social está com manifestas dificuldades em lidar com a cultura digital e, mais especificamente, com a inteligência coletiva que emana das novas plataformas digitais, não apenas por ausência de um pensamento transdisciplinar apropriado, mas, sobretudo, por falta de um código de linguagem apropriado a um novo “agir comunicacional”. Em especial, a interação entre comunidades online e comunidades offline é uma fonte inesgotável de ensinamentos, não apenas no lado cognitivo destas comunidades, como, também, no lado preventivo e terapêutico destas comunidades pois não podemos esquecer o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam.

E o que dizer da crise do covid19 no plano dos comportamentos sociais. Os riscos globais e sistémicos, materiais e imateriais, serão uma autêntica provação para a comunidade humana e porão à prova a nossa verdadeira solidariedade. Doravante, teremos por companhia habitual a carta de riscos globais e sistémicos devidamente atualizada. Por uma razão simples, em matéria de riscos sistémicos a procissão ainda só vai no adro, ou seja, as nossas diferentes pegadas – ambientais, sanitárias, hídricas, digitais, alimentares, securitárias, tecnológicas, industriais – vão devolver-nos com custos acrescidos e graves muitos dos nossos erros de comportamento. Por isso, a grande lição desta pandemia é acerca da economia dos nossos comportamentos e nela o papel das ciências humanas e sociais em matéria de ciência dos comportamentos. Eis, pois, também, uma mutação à nossa frente, a mutação dos nossos comportamentos e a busca de uma outra sociabilidade e convivialidade