Há uma primeira conclusão a retirar dos resultados conhecidos ontem à noite nas eleições regionais catalãs: os independentistas foram derrotados. Têm-se esforçado muito e pareceram (aos seus olhos e aos olhos daqueles que, dentro e fora de Espanha, os observam com condescendência) à beira de obter uma grande e decisiva vitória política por via eleitoral. Porém, e apesar de pretenderem iludir a opinião pública catalã, espanhola e internacional, não só não a conseguiram, como não a conseguirão nunca (excepto no caso das circunstâncias se alterarem substancialmente).
Uma vitória de Pirro
É verdade que os independentistas ganharam porque conseguiram eleger o maior número de deputados para o Parlamento regional. No hemiciclo catalão, haverá uma clara maioria pró-secessionista (72 em 135). Porém, a lista mais votada, Junts pel sí, não conseguiu uma maioria de mandatos. Mas verdadeiramente importante, aos independentistas do Junts pel sí (40%) e do CUP [Candidatura d’Unitat Popular] (8%) faltou-lhes aquilo que mais desejavam: uma clara maioria dos votos expressos. Pretendiam — mesmo que nunca o confessassem — conquistar cerca de 55% dos votos. Ficaram-se por pouco mais de 47% contra os cerca de 52% depositados nos partidos e movimentos “integracionistas”. Se isto não foi uma derrota…
Os independentistas podem governar a Catalunha, dir-se-á. Mas a verdade é que não concorreram para governar. Aliás, na campanha eleitoral nunca demonstraram ser essa a sua intenção, porque afirmam que a Catalunha só pode ser verdadeiramente governada quando for um estado independente. Desconhece-se, pois, aquilo que Junts pel sí, com ou sem CUP, pretende fazer no domínio do ensino, da saúde ou da segurança social públicas que sucessivos governos autonómicos há décadas administram; que medidas pensa adoptar para equilibrar as finanças autonómicas ou para recuperar a economia e reduzir o desemprego; não se sabe, tão pouco, se existe o desejo de combater a corrupção e com que meios… Esta indisponibilidade para governar foi recordada no discurso de consagração, que foi também de uma certa vitória, feito pela cabeça de lista dos Ciudadanos e candidata à presidência da Generalitat, a andaluza Inés Arrimadas García. Inés Arrimadas não deixou, aliás, de pedir a demissão imediata de Artur Mas de president e a rápida convocação de novas eleições.
Tanto por razões políticas como ideológicas, aos deputados de Junts pel Sí (uma lista constituída fundamentalmente por socialistas da Esquerra Republicana e conservadores da Convergència i Unió, CIU) resta apoiar um novo governo autonómico centrado na persecução da sua agenda secessionista, embora tanto aqueles como este não possam, ou não devam, avançar para a independência – negociada ou unilateral – uma vez que, enquanto plebiscito, as eleições de ontem foram uma derrota e com esta derrota ninguém em Espanha ou na Europa aceitará negociar soluções independentistas ou apoiar qualquer declaração unilateral de independência catalã. Além disso, e olhando para a composição do parlamento regional, dificilmente poderão sequer os independentistas propor e negociar um novo estatuto autonómico uma vez que são necessários dois terços dos votos para a sua aprovação (faltam-lhes 18 votos que, por exemplo, o Podemos catalão [Catalunya Sí que es Pot] e o PSC (Partido de los Socialistas de Cataluña) não obtiveram isoladamente). De qualquer modo, e nesta fase do confronto político, um novo estatuto autonómico nunca seria proposto ou aceite pelos independentistas, facto que demonstra o grau de paralisia política em que a questão catalã mergulhou.
Vale ainda a pena recordar que se o referendo ilegal, convocado pelos independentistas em Novembro do ano passado, redundou numa derrota para os seus promotores, fruto da abstenção de uma larga maioria dos catalães recenseados, a eleição de ontem reforça essa derrota por razões opostas. As assembleias de voto na Catalunha conheceram uma afluência praticamente inédita em quase 40 anos de democracia (cerca de 77% de participação). Ora, e como seria de esperar, a forte participação eleitoral mina o independentismo. Não só porque não lhe dá a maioria dos votos que ambiciona e de que necessita, mas porque reforça a ideia de que a secessão divide os catalães tanto quanto une a esmagadora maioria dos espanhóis contra o independentismo, seja ele catalão, basco ou galego. Há, sabe-se agora, uma minoria de eleitores que defende a independência (Junts pel Sí e CUP), e uma maioria que se lhe opõe (PP, Catalunya Sí que es Pot, PSC e Ciudadanos). Divisão maior é difícil de imaginar. Positivo é apenas o facto de a violência física estar, por enquanto, quase totalmente ausente da questão catalã.
O futuro da Catalunha em Espanha
Neste contexto, a grande interrogação suscitada, quando se analisa a situação política saída das eleições de ontem, resume-se a tentar perceber de que modo o nó do independentismo catalão pode ser desatado para não ter que ser cortado. Ou seja, de que forma pode evoluir nos próximos dias, semanas e meses, a situação política tanto na Catalunha, como no resto de Espanha, sendo que dessa evolução pode sair, ou não, uma solução equilibrada, moderada e consensual para catalães, espanhóis e europeus.
Uma breve análise dos resultados e, sobretudo, uma breve apreciação dos seus efeitos talvez lancem alguma luz sobre o problema e a forma como se poderá desenvolver. Em primeiro lugar, é evidente que os dois grandes derrotados foram Artur Mas e Mariano Rajoy. A coligação liderada pelo primeiro perdeu porque não ganhou o que queria e como queria. Está politicamente imobilizada, poderá dividir-se e, acima de tudo, está totalmente dependente daquilo que venha a ser o resultado das eleições legislativas nacionais que acontecerão, pensa-se, lá para Dezembro. Ou seja, desde ontem a iniciativa política não está na Catalunha, nomeadamente no Parlament ou no president da Generalitat. Uma clara derrota do PP, afastando-o do Governo em Madrid era o melhor que Artur Mas poderia ambicionar, uma vez que no Palácio da Moncloa poderia passar a sentar-se alguém com uma posição mais aberta ao diálogo no que respeita à questão da revisão tanto da autonomia catalã como da estrutura do estado espanhol. Uma vitória do PSOE talvez possibilitasse o início de um processo de revisão constitucional que permitisse a transformação do reino de Espanha num estado federal, facto que embora não satisfizesse o PP por umas razões e a Esquerra Republicana ou o CUP, por outras, colocava em cima da mesa uma solução, ainda que transitória, para o problema catalão e para a erosão política que Artur Mas e a sua CDC (Convergència Democràtica de Catalunya) certamente conhecerão nos próximos meses.
O outro derrotado de ontem, o PP, ao perder votos e deputados, está também numa situação difícil. Não sendo claro que consequências terá para legislativas de Dezembro o resultado obtido ontem pelo PP, certo é que o partido do Governo tentará de certo modo esconde-los por trás, por exemplo, dos sinais de recuperação económica ou da aprovação de umas Contas Gerais do Estado para 2016 tidas por muitos como clara e excessivamente eleitoralistas. De qualquer modo, parece evidente que a questão catalã vem provocando uma erosão nas possibilidades eleitorais do partido liderado por Mariano Rajoy. Não porque os espanhóis queiram, genericamente, que o PP e o estado se rendam às exigências dos independentistas catalães, quaisquer que sejam essas exigências. Mas porque os espanhóis pretendem sobretudo que o governo de Madrid, como os vários governos autonómicos, se centre no essencial: faça crescer a economia, combata a corrupção, diminua o desemprego, baixe os impostos e torne o ensino público e a saúde pública mais eficientes, sobretudo depois dos “cortes” impostos a partir de 2009-2010. Portanto, a Rajoy interessa estancar rapidamente os efeitos dos resultados obtidos pelo PP ontem na Catalunha, ao mesmo tempo que lhe importará destacar o facto de, por um lado, o independentismo ter sido derrotado e Espanha estar a ter um bom desempenho económico e a conhecer uma melhoria da sua situação social. Não subam os juros da dívida pública por causa dos resultados de ontem e mantenha-se a economia espanhola a crescer com taxas acima de todas as outras economias da zona euro e pode ser que o PP volte a ganhar as eleições, ainda que repetir a maioria absoluta deva estar fora do alcance do partido fundado por Manuel Fraga.
Mas além do PP e do Junts pel sí também o Podemos e o PSC obtiveram maus resultados nas eleições de ontem. No caso da formação liderada por Pablo Iglésias, é evidente que não só não escapou ilesa à polarização entre independentistas e integracionistas na Catalunha, como pode estar a dar-se o caso de deixar de conseguir conquistar o voto daqueles que procuram uma alternativa ao panorama político-partidário tradicional. Pedro Sánchez e o Partido Socialista, por seu lado, parecem na Catalunha estar a seguir na peugada do PP e de Rajoy. É verdade que a descida eleitoral foi pouco significativa, mas convém sublinhar o facto de o PSC já ter sido o partido com mais votos na Catalunha, ainda que sem conseguir eleger uma maioria parlamentar. Tal como Rajoy, também Pedro Sánchez terá que conseguir evitar que a sua oposição ao Governo, centrada numa análise sobre a forma como os problemas nacionais evoluem, seja minada pela permanente evocação da questão catalã.
O fenómeno Ciudadanos
Finalmente o Ciudadanos. Esta formação viu subir muito significativamente o número de votos (de 274 925 para 732 147) e de mandatos (de 9 para 25). Cresceu fundamentalmente através da conquista de eleitores do PP e de cidadãos que se abstiveram em 2012. Ciudadanos tem o mérito, na Catalunha e por todo o resto de Espanha, de possuir lideranças que por agora parecem globalmente capazes de apresentar propostas que, na área do centro-direita, em quase todas as grandes questões políticas, económicas e sociais, são vistas como mais moderadas e sensatas que as do PP. Mas, e sobretudo, Ciudadanos apresenta-se com um pessoal político que além de mais jovem que aquele que compõe os partidos tradicionais, transmite a forte sensação de ser muito bem preparado, além de que não foi chamuscado pelos escândalos de corrupção que minaram a vida político-partidária espanhola com maior intensidade nos últimos três ou quatro anos.
Instalado entre o PP e os socialistas, o Ciudadanos parece ter confirmado com o resultado obtido nas eleições de ontem a ideia de que terá, muito mais do que o Podemos, um papel a desempenhar na política espanhola dos próximos quatro anos, especialmente se fizer parte de um Governo de coligação com o PP ou o PSOE. Não importando discutir que reflexos poderá ter uma sua chegada ao poder na política nacional, parece óbvio que lhe caberá igualmente desempenhar um papel importante no desatar do nó catalão antes que este tenha que ser cortado. Ciudadanos poderá, após um bom resultado nas eleições nacionais de Dezembro que o levem ao Governo, e ao saber escolher bons candidatos e apresentando boas propostas no contexto catalão, descolar a CDC da Esquerra Republicana.
Deste modo uma solução não secessionista para a Catalunha será eventualmente encontrada e Ciudadanos poderá, salvaguardadas todas as distâncias, conferir a si próprio e/ou a CDC o papel que a Lliga de Catalunya (partido nacionalista catalão) desempenhou na política espanhola e catalã no início do século XX, conciliando forças políticas entretanto desavindas mais por vontade de lideranças políticas do que pelo peso das circunstâncias. Pode então ser que muitos nacionalistas catalães voltem a rever-se enquanto tal no slogan usado pelos seus bisavós: “Per l’Espanya Gran” (principal slogan usado pela Lliga nas eleições de 1916).