A medicina perdeu a sua alma, o seu ADN, de forma tão manifesta e relevante que podemos afirmar que se “desmedicalizou”; transformando-se em algo diferente a que só por preguiça ou ignorância podemos continuar a chamar medicina e médicos aos seus praticantes.
A medicina era a profissão que tratava de promover a saúde e diagnosticar e tratar as doenças que afetam os seres humanos, de modo a manter ou devolver-lhes o bem-estar físico e psíquico. No seu mister, a medicina tinha por objecto o ser humano completo, corpo e alma, integrado na família e na sociedade, com livre-arbítrio para tomar decisões e buscar a sua felicidade.
A moderna cultura Ocidental, porém, rejeita a visão holística da medicina tradicional. Objectifica o corpo e transforma-o numa coisa, num mecanismo de que desfrutamos a nosso belo prazer. Um mecanismo constituído por “peças” que podemos melhorar e afinar de acordo com as últimas inclinações da moda.
Esta tendência para ver o corpo como um conjunto de peças engrenadas e as doenças como conjuntos de problemas isolados, sem referência à integralidade do ser humano, subverteu a medicina, retirando-lhe o foco. Ao modernizá-la, matou-a.
Atravessamos uma época hiper-racionalista, orientada para a ciência e tecnologia. Tentamos compreender o mundo complexo em que vivemos com a perspectiva científica de estudar e analisar os seus elementos constituintes, assumindo que o conhecimento daqueles ilumina o conjunto. O resultado é uma especialização crescente e uma tecnicização do conhecimento, que por sua vez promove a substituição da sabedoria, que provém da experiência e da intuição, pela recolha e processamento de dados.
As situações concretas e reais têm vindo a ser substituídas por conceitos teóricos e abstratos, que parecem mais convincentes, e as competências pessoais ficaram reduzidas a procedimentos algorítmicos, desenhados e regulamentados por administradores.
Na sua obra, o Mestre e o seu Emissário, Ian McGilchrist recorre a uma metáfora, atribuída a Nietzsche, que conta o colapso de uma sociedade governada por um líder, o Mestre, quando este delega parte das suas funções em Emissários que acabam por usurpar o seu poder, convencidos de que têm mais conhecimentos e experiência do que ele.
O todo, como disse Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), é maior do que a simples soma das suas partes e cuidar do todo, a função do Mestre, é muito mais exigente do que cuidar de cada parte isolada (a função dos Emissários).
A medicina tradicional aborda o todo, o ser humano pleno e não apenas as partes isoladas que teoricamente o compõem. Os médicos não tratam cérebros, fígados ou rins, mas pessoas que podem ter problemas destes ou de outros órgãos. Pessoas com uma existência concreta e problemas únicos que necessitam de uma atenção particular. Recorrendo à metáfora de Nietzsche, o médico era o Mestre, a pessoa que detinha a visão do todo (o conhecimento, a experiência e a intuição que nestes se baseia), que lhe permitia iluminar o caminho a percorrer de mão dada com os seus doentes.
Os subespecialistas da medicina (pomposamente apelidados de especialistas), são os Emissários do Mestre, desempenharam e desempenham um papel notável na expansão do conhecimento médico, mas sem esquecer que estão focados apenas em fragmentos do ser humano.
O império do subespecialismo desmedicaliza a medicina porque lhe retira a sua única razão de ser, o bem-estar da pessoa, única e plena na sua peregrinação do nascimento até morte.
Na metáfora de Nietzsche, os subespecialistas são os Emissários do Mestre, o afastamento deste desmedicaliza a medicina.
Permitam-me apresentar dois argumentos em suporte da minha tese da DESMEDICALIZAÇÃO DA MEDICINA.
- A proliferação das medicinas alternativas;
- A resposta à recente epidemia de Coronavírus, a Covid-19.
A proliferação das medicinas alternativas
A expansão das chamadas medicinas alternativas demonstra o descontentamento das pessoas com a medicina tradicional. Os doentes queixam-se de que os médicos não os ouvem, não os examinam fisicamente e de que não revelam empatia com os seus problemas; só parecem interessados no resultado de análises e de exames complementares de diagnóstico.
A realidade é que os médicos, as mais das vezes, estão a seguir algoritmos e protocolos científicos, preparados por subespecialistas, para demonstrar ou descartar certos diagnósticos e prescrever a terapêutica recomendada. Os doentes, com as suas particularidades, não passam de um obstáculo aos desígnios da ciência.
Em contrapartida, os praticantes das medicinas alternativas escutam as pessoas, manipulam o corpo, apaziguam alma e ainda recomendam regimes de tratamento personalizados.
A procura crescente das medicinas alternativas demonstra o fracasso “medicina moderna”.
A resposta à recente epidemia de Coronavírus, a Covid-19
As medidas de resposta à epidemia do Coronavírus, declarada uma pandemia pela OMS no dia 11 de Março de 2020, foram paradigmáticas da supremacia actual das subespecialidades na praxis médica.
A Covid-19 começou por ser apresentado como um vírus novo, com uma letalidade potencial enorme, urgindo medidas extraordinárias que, como sabemos, foram equiparadas às de uma guerra, mas desta feita uma guerra “contra um inimigo invisível”.
Para espanto geral, porém, as recomendações foram sempre pouco específicas, questionáveis e até contraditórias. Desde o uso de máscaras, até à necessidade de confinar pessoas saudáveis, os cientistas da medicina revelaram uma profunda ignorância, que deixou a população apavorada.
A ignorância, em ciência, é uma confissão de humildade e um estímulo à investigação. Neste caso, porém, a ignorância tornou-se atrevida, desdenhando do saber resultante do conhecimento das ciências básicas, da experiência acumulada e da intuição clínica.
Muitos médicos seniores vieram a terreiro falar da sua experiência com a família do Coronavírus, de epidemias anteriores e das consequências gravosas de um “lockdown”, mas foram rapidamente silenciados pelos cientistas e pelos órgãos de comunicação social.
O golpe de estado estava concluído, o Mestre tinha sido afastado pelos Emissários que focados num problema – a epidemia do Coronavírus – ignoraram que o ser humano não pode sobreviver confinado e isolado.
O hubris dos Emissários, os subespecialistas, chegou ao ponto de acusar os colegas da velha guarda, que tentavam analisar os problemas da epidemia do Coronavírus na sua globalidade, de economicismo e de terem “as mãos sujas de sangue”.
Neste momento, porém, quando se começa a fazer o balanço do número de vidas perdidas e destroçadas pelas medidas da guerra ao Coronavírus, começam a tornar-se evidentes os erros cometidos pelos subespecialistas: epidemiologistas, virologistas, infeciologistas, intensivistas, imunologistas, biólogos e até matemáticos, todos altos conhecedores das suas respetivas áreas, mas pouco conhecedores da medicina tradicional.
Conclusão
A perda de foco da medicina no seu objecto de sempre, o ser humano, não é um fenómeno novo. Muitos têm refletido sobre este tema e verbalizado as suas preocupações. Contudo, foi a epidemia do Coronavírus que expôs de forma clara as consequências gravosas desta deriva:
- Milhares de mortes não-Covid e dezenas de milhares de vidas destruídas.
Precisamos de parar para pensar na desmedicalização da medicina e perguntarmo-nos o que desejamos:
- Um regresso à medicina tradicional ou, em sua substituição, uma espécie de engenharia mecânica do corpo humano?
Deixo a pergunta no ar.
Haja saúde!