— Joaquim — disse a minha mulher — tu devias candidatar-te a Bastonário da Ordem dos Médicos (OM). Tens um currículo excecional, tens experiência e tens manifestado publicamente as tuas opiniões com total independência…

Quando a I., que é médica anestesista, terminou os seus encómios, desatamos os dois a rir.

— Não é bastonário quem quer… isto é como na política, tens de ter apoios partidários, da Maçonaria ou da Opus Dei e de algumas capelas do próprio SNS. Não te vais apresentar com base no “sou quem sabes”. Depois, o meu programa ia ser uma pedrada no charco que ia respingar muita gente; “arrenego Satanás” — já ouço.

O amável e condescendente leitor destas linhas, que também tem direito a umas boas gargalhadas, perguntará:

—  Ó doutor, mas afinal qual seria o seu programa eleitoral?

Bom, permitam-me que aqui responda no tom de à-vontade intelectual que o meu estatuto de candidato/não-candidato permite.

Em primeiro lugar eu proporia que a OM vendesse todos os palácios e palacetes de que é proprietária e que, com essa receita, reembolsasse os médicos de forma proporcional aos respetivos contributos passados. Chega-nos um modesto escritório e um bom portal na internet.

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A proletarização da classe médica criou uma dissonância entre a aparência e a realidade, comparável à dos aristocratas falidos que se agarram aos paços brasonados da família, sem dinheiro para “mandar cantar um cego”.

No momento atual, o vencimento de entrada na carreira, para um médico, é praticamente idêntico ao de um enfermeiro, apesar da licenciatura em medicina ser bastante mais complexa e exigente. Muitos interrogam-se se valerá a pena o esforço.

Esta ostentação burlesca, por outro lado, tem custos supérfluos e é fonte de invejas evidentes. As outras ordens profissionais, por exemplo, devem pensar que ensandecemos ou que não temos sentido do ridículo.

Em segundo lugar eu proporia que todos os Diretores Clínicos do País, tanto do SNS como dos hospitais privados, voltassem a ser eleitos pelos corpos clínicos das suas respetivas instituições e que a nomeação final dependesse da aprovação do Conselho de Ética da OM.

Sem esta autonomia não é possível garantir a qualidade dos atos médicos, uma vez que os clínicos ficam sem recurso independente para os seus protestos, podendo vir a sofrer represálias: ostracismo no SNS e despedimento na privada.

Em terceiro lugar, como bastonário, eu nunca aceitaria “donativos” da Big Pharma, nem de quaisquer outras empresas privadas porque “à mulher de César não basta ser séria…” e, em boa verdade, não há “almoços grátis”. Desculpem os chavões, mas a realidade é assim mesmo.

Na mesma linha, exigiria a todos os colegas abonados pela indústria farmacêutica que revelassem possíveis conflitos de interesse em todas as intervenções públicas. O contrário brada aos céus e deixa a população sem saber se o médico “está com o chapéu de clínico ou de delegado de propaganda médica” quando fala de saúde.

Em quinto lugar, eu lutaria por um exame nacional de acesso à inscrição na OM. Esta barreira à entrada é necessária devido à multiplicação do número de faculdades de medicina (públicas e agora também privadas) e à natural preocupação com a qualidade das licenciaturas.

Precisamos de médicos altamente qualificados, independentes e de um sistema que assegure essa independência. E dispensamos sinais exteriores de riqueza incompatíveis com uma certa austeridade que deve ser apanágio da profissão.

— Ó Joaquim — comentou a I. depois de ler o rascunho deste texto — divulga as tuas ideias, pode ser que surja uma vaga de fundo…

— Só se for para me afogarem — respondi-lhe — e ficamos a rir mais um bom bocado.

A OM é e vai continuar a ser, para o bem e para o mal, o espelho do País. Gostamos de aparentar o que não somos.