Se é verdade, por um lado, que devemos à senda nacionalista da segunda metade do século XX uma histórica contribuição negativa para a gestão das contas públicas, não é menos relevante que a liberalização económica e as privatizações ofereceram desafios apelativos ao intervencionismo estatal, com vista a proteger os consumidores das falhas de mercado.

O projecto comunitário da União Europeia afastou a ambience dos Estados-concorrentes, que outrora haviam defendido com determinação modelos neoclássicos de constituições económicas, em prol dos Estados-coordenados ou, diria antes, dos Estados-subordinados, regressando o nevoeiro agoirado da interferência administrativa e política nos desígnios das nações soberanas. No entanto, quer-me parecer que o modelo hierárquico deste direito comunitário não há-de ser mais do que um federalismo de “faz-de-conta”. As raízes do constitucionalismo liberal e democrático, ainda muito presentes e entranhadas no espírito dos povos, não participam na ambição da perda progressiva de soberania dos Estados a favor de supraestruturas desconhecidas e desligadas dos reais desafios de cada país, sob a premissa de perseguir os grandes desígnios das liberdades fundamentais da União.

Sendo sensível, de antemão, ao argumento favorável de uma supervisão estatal que assegure o respeito pelas necessidades individuais e colectivas de todos os intervenientes nas relações mundiais, qual professor que impele o bom comportamento dos alunos e admoesta os mais rebeldes, penso – como disse, há dias, em conversa – que estamos a defender um projecto partindo do pressuposto de que as pessoas se comportam mal (sem a integração europeia, viveríamos, vulgo, numa “bandalheira”). Não consigo deixar de traçar o paralelismo com a figura publicista das teorias dos fins da pena: se esta tem fundamentalmente um cariz de prevenção geral e subsidiariedade, porque não se alicerça a argumentação de defesa do projecto europeu em propósitos mais nobres e excelsos de promoção do bem-estar socio-económico dos cidadãos, em vez de reprimir ficções?

A regulação pública, que assume várias formas – política, económica, administrativa – peca no seu excesso de zelo e nas suas desmedidas pretensões: não saberá um Estado adequar convenientemente as traves-mestras do seu ordenamento jurídico às oscilações da vida comunitária dos cidadãos e à sua relação com o poder político? Precisamos realmente de abdicar desta costela soberana do poder administrativo, quando já estendemos a passadeira vermelha à supremacia legislativa do direito internacional?

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Mais concretamente, chamo hoje à colação o papel das entidades administrativas independentes, baluartes do novo conceito de intervenção indirecta do Estado na regulação dos sectores económico e social.

As áreas de regulação económica, social e política têm vindo a ser, ao arrimo da tendência internacional, progressivamente sonegadas aos mecanismos representativos com a criação de entidades ditas “independentes” (do poder político), que concentram em si os poderes tradicionais do Estado. A questão fundamental é que, com a transferência de poderes operada pelo poder legislativo, o Estado deixa de ser a única entidade pública com poderes normativos. Para além de questões ligadas à falta de legitimidade democrática e à ausência de accountability, o seu poder normativo tem causado inquietações e estimulado a reflexão sobre os conceitos contidos nos princípios da separação de poderes e da legalidade. A concentração dos três poderes do Estado em entidades que não respondem eficazmente nem perante o Parlamento nem perante o Governo, e só limitadamente respondem perante os tribunais (que só fazem um controle de legalidade da sua actuação), levanta, pelo menos, dois tipos de problemas: a sua falta de legitimidade democrática; o esvaziamento de poderes do Governo em benefício de entes supranacionais e regionais, tornando este órgão soberano cada vez mais supletivo.

No panorama comunitário, são de notar, inclusive, casos em que é a criação de uma entidade autónoma a nível da União Europeia que constitui fundamento para a criação ou consolidação de certas entidades reguladoras nos Estados-membros.

Simplesmente, julgo que estamos a derivar para uma tendência dirigista que auspicia ventos antigos de excessiva tutela do primitivo constitucionalismo social. A desconfiança na capacidade de poderes democraticamente eleitos responderem às necessidades contemporâneas de gestão eficiente dos mais variados intentos da sociedade não deveria colocar em cheque as individualidades próprias de cada comunidade. Dito de outra forma, a compliance com as regras da vivência em comunidade internacional alargada pode bem uniformizar, ao nível de um socialismo dirigente, as singularidades terrenas e identitárias que justificaram toda a produção legislativa fomentadora do bem-estar social do cidadão individualmente tido em conta.

Sob o prisma das considerações tecidas, com o pano de fundo da europeização do direito administrativo, não se me afigura claro o benefício da implementação destes mecanismos ao nível comunitário na integração social do cidadão europeu. À primeira vista, puras e despretensiosas razões de proximidade da política local e nacional bastar-me-iam para defender a tese deste bem-estar social, mas todas as ramificações axiológicas, científicas e teleológicas, que consigo fazer derivar dos argumentos expostos, apontam para este calcanhar de Aquiles do modelo de integração europeia, do qual não inspiro outra coisa que não uma crescente descrença na sua completude.