Eram 6 da tarde em Budapeste, num dia de calor extremo quando ouvi uma pequena multidão com tambores e bandeiras LGBT a marchar em direção ao rio Danúbio. Decidi segui-los com curiosidade. Quando desembocámos na praça Kossuth Tér vi algo quase inenarrável. A praça à frente do icónico parlamento húngaro estava atolada de pessoas, como eu nunca tinha antes visto. Era um mar avulso com milhares de cartazes contra Orbán, contra a homofobia, bandeiras, confettis, música. As mais de 10 mil pessoas que passavam por mim eram quase todas jovens, entre os 20 e os 25 anos. Num canto da praça havia uma pequena contramanifestação de um grupo de meia-idade que não devia ter mais de 20 pessoas.

O que aqueles jovens húngaros reivindicavam não é bem aquilo que muitos jornais relataram e nem tampouco a Hungria corresponde à descrição feita por esses mesmos jornais. Neste sentido, decidi escrever este artigo em resposta a este ímpeto de informações falseadas e hiperbolizadas.

A sociedade húngara é considerada a mais polarizada da Europa e tem discutido intensamente este tema. Ao ler alguns jornais estrangeiros fiquei com a sensação de que a Hungria é um país onde nazis patrulham as ruas e onde não há lugar à diversidade. Tal facto não poderia estar mais longe da verdade. Falando com alguns membros da comunidade LGBT, houve até um membro que me disse que tinha experienciado mais homofobia em Lisboa que em Budapeste. “Eles, aqui, simplesmente não ligam.”

É necessário mais abertura e compreensão quando se fala de um país complexo como este. Um país, cujo um terço da população vive numa cidade grande como Budapeste e, que por essa razão, valoriza a multiculturalidade e a diversidade, contra dois terços do país que habita maioritariamente em meios mais pequenos e por essa razão valoriza comunidades pequenas e valores tradicionais. Um país com uma mentalidade de antes de 1989 (antes da queda da “Cortina de Ferro” e do comunismo) que se sente traído pelo globalismo que tanto ansiavam contra as pessoas do país com uma mentalidade pós-1989 e que querem uma civilização global para a Hungria. Metade do país é a favor de Orbán e a outra metade é contra. A engenhosa armadilha de Orbán é que se confunda a Hungria com o Governo, porque, assim sendo, o voto patriótico do “orgulho ferido” vai cair no lado do Fidesz (partido do governo). Veja-se o exemplo do estádio Allianz em Munique, onde se está a pensar em colocar as cores da LGBT no recinto, visando a seleção húngara e os adeptos de futebol húngaros, quando estes têm pouco ou nada a ver com o governo húngaro. Mas alguém acha que isto faz sentido?

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A propósito do pacote de medidas polémico é preciso compreender o contexto. Em março de 2019, um embaixador húngaro no Perú, Gábor Kaleta, afeto ao Fidesz (partido de Orbán) tinha sido encontrado com centenas de filmes de pornografia infantil. Na altura, este escândalo causou bastante revolta na sociedade húngara. Em resposta, e para sacudir a ligação deste embaixador ao Fidesz, Orbán prometeu criar um pacote legislativo com vista a endurecer as medidas contra a pedofilia.

Este pacote legislativo anti-pedofilia foi finalmente lançado no parlamento e uma das medidas polémicas é a proibição de conteúdos LGBTQ a menores de 18 anos, como se estes tivessem de alguma forma relacionados com o hediondo crime da pedofilia. De acordo com alguns analistas húngaros, este conjunto de medidas são uma espécie de cavalo de Tróia que visam combater a pedofilia, mas que também permitiram ao governo introduzir de modo esquizofrénico e “à socapa” medidas anti-LGBTQ+ no mesmo pacote legislativo, que cristalizam a longa cruzada de Orbán contra a homossexualidade. A maioria da oposição húngara (Jobbik) aprovou estas medidas, não porque é homófoba, mas porque não aprovar este pacote legislativo chamado “anti-pedofilia” significaria chumbar as outras leis que efetivamente batalham o crime da pedofilia. E nisto consistiu, também, parte da engenhosa armadilha de Orbán, onde mais uma vez a maior parte da oposição caiu.

No entanto, alguns jornais passaram a ideia errada sobre o sucedido na Hungria. É preciso enfatizar que ser homossexual não é um crime neste país e “nem tem o mesmo valor que a pedofilia” de acordo com o mesmíssimo Szijjarto, porta-voz do governo. O que se discute e se exige é que o governo retire a “promoção de conteúdos LGBT” até aos 18 anos de uma lei que visa combater a pedofilia, porque os dois (e aqui concordamos todos) não são a mesma coisa e aliás não ajuda a destruir certos estereótipos contra esta comunidade. Mas o que significa, afinal, a promoção de conteúdos LGBTQ+? A verdade é que não se sabe muito bem, porque a lei não especifica em concreto o que tal significa. Será que filmes como Billy Elliot vão ser proibidos? Pulseiras LGBTQ+ serão proibidas para menores de 18 anos? Ninguém sabe ao certo, mas bastantes jornais já se prontificaram a dar como verdade absoluta a lista de coisas que vão ser proibidas pelo governo húngaro, quando na verdade ainda estamos muito dentro do campo da especulação. Com este tipo de jornalismo não objetivo e ultra simplificado, não tenho dúvidas de que o futuro pertencerá aos populismos, de esquerda ou de direita.