“Eu não sou húngaro, eu sou de Budapeste!” gritava um colega meu, durante um monólogo em que desferia apopleticamente insultos contra Orbán. Era uma daquelas noites de verão excessivamente quentes, ao ponto de quase secar a garganta. Estávamos num dos poucos bares pacatos do quarteirão judeu em Peste, ao lado da sede do Fidesz (partido de Viktor Orbán). Estremeci, queria que ele parasse de falar tão alto – conhecidos meus noutros cantos do país tinham-me relatado legiões fiéis e controladoras do “Rei Orbán”. De soslaio, tentei investigar alguma reação dos húngaros à nossa volta. Mas sem sucesso – eles mantinham aquela expressão natural tão própria deles: sisuda, imperturbável, às vezes com um sorriso sofrido. (Não é que eles sejam frios, os húngaros que conheci são brutalmente diretos e acham estranho que as pessoas noutros países estejam sempre a sorrir.) Foi então que me lembrei de uma frase que li num livro de Colin Swatridge, enquanto esperava o comboio para Szentendre – “A Hungria não é Budapeste e Budapeste não é Hungria”. Percebi naquele momento o sentido daquela frase.

Não é difícil explicar o sucesso de Viktor Orbán na Hungria (à exceção de Budapeste), como sendo o Primeiro-Ministro há mais tempo em funções na Hungria. Orbán é, simplesmente, um conhecedor de História. Pois quem já mergulhou no oceano da história húngara, sabe que ela é uma história trágica. Entre invasões mongóis no século XIII, junte-se-lhe quase 400 anos de invasões otomanas, austríacas, nazis e depois a consolidação enquanto Estado satélite da URSS, de 1945 a 1989.

O facto de a Hungria ter sido invadida e espezinhada centenas de vezes, fez com que os húngaros entrassem numa histeria coletiva em torno da segurança do país e da sua cultura. De facto, sempre achei fascinante que neste país seguro todas as casas estão exageradamente gradeadas – como se estivessem preparadas para uma invasão. Depois do escândalo de Ferenc Gyurcsiani, Orbán aproveitou este “trauma” do seu povo para conquistar eleitorado: recorre a uma retórica inflamada contra refugiados, contra o Estado de Direito da UE, LGBT, Soros, o Tratado de Trianon e outros “inimigos da Hungria”. Em suma: passa a narrativa de que ele é o único bastião que impede a Hungria de ser “invadida” e “humilhada” uma vez mais. O atual estado de emergência só solidificou mais o seu poder.

Contudo, tal como na Gália de Goscinny havia uma aldeia não ocupada pelos romanos, na Hungria existe uma Budapeste não ocupada pelo Fidesz. Apesar da mesma história trágica, desde o século XIX que Budapeste foi uma cidade pensada para ser monumental e cosmopolita, concentrando quase toda a população letrada da Hungria e talvez isso explique a resistência ao sufoco iliberal de Orbán.

Face a uma nova lei eleitoral que dificulta a concorrência de partidos às eleições nacionais de 2022, os vários partidos da oposição decidiram juntar-se numa coligação única. Integram esta “geringonça” seis partidos, de espectros políticos tão antagónicos, que vão desde a direita conservadora (Jobbik) à esquerda socialista (Mszp). Seria como ter André Ventura e Mariana Mortágua na mesma coligação, alguém imagina? E isto não é chocante, desde há muito que o pouco debate político na Hungria deixou de ser direita vs esquerda e passou a ser pró- Orbán vs. anti-Orbán.

Nesta Hungria paradoxal nasce uma geringonça, mas será capaz de fazer tremer o império férreo de Orbán? Por agora, uma sondagem da Medián, em plena pandemia, coloca a coligação à frente do Fidesz, podendo ser este o início do fim para Orbán – desta vez não só em Budapeste, mas em todo o país.

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