O grego concebia e representava linguisticamente a realidade de uma forma completamente diferente da nossa, nomeadamente pelo enorme cuidado que colocava na escolha do modo verbal. Em português, o grau de ‘realizabilidade’ (e, portanto, de desejo) de uma acção é quase completamente independente do verbo e expressa-se por intermédio de advérbios e locuções. Em grego, porém, cada acção humana era ponderada e enquadrada a partir do seu grau de realidade: cada grau correspondia a um modo verbal específico escolhido por quem falava.
Os apaixonados por fotografia compreender-me-ão melhor, por certo: serão necessárias cem, talvez mil fotos até se conseguir uma boa. Serei talvez optimista: por vezes, atravancadas por um enquadramento canhestro ou por uma exposição incapaz de captar o que parecia digno daquele momento, nem uma se aproveita. E mesmo quando, por fim, numa anuência desistente, acedemos a escolher apenas as sofríveis e a compilá-las num álbum, percebemos que até a ordem em que as dispomos faz diferença: uma mesa festiva seguida de uma estrada vazia nas montanhas tem um significado diferente de uma estrada vazia nas montanhas seguida de uma mesa festiva. Talvez não saibamos exatamente qual, mas sabemos que existe uma diferença.
No fim, ironia das ironias, é frequente que a mais bela das imagens seja por vezes precisamente aquela que se captou por acaso: todas as que foram estudadas, pensadas, preparadas, todas aquelas das quais esperávamos uma obra-prima parecem-nos forçadas, postiças; aquela única (umas mãos aflitas à frente da objectiva, por exemplo) que foi roubada ao acaso é paradoxalmente a que consegue captar a própria essência da luz e fixar aquele movimento fugidio que por si só redime um instante, o tempo, uma história inteira.
A escolha, a ordem, depois a sorte: num álbum de fotos, afinal, está tudo o que há num encontro, porque nos bons encontros, há – tem de haver – tudo o que há na vida. Ou na ciência. Um encontro e uma ciência que não nos digam nada sobre nós mesmos são tão inúteis quanto um álbum manhoso. E se essa ciência estudar a linguagem, é impossível que ela não nos diga algo sobre nós porque a linguagem, como os teoremas e as sinfonias, existe apenas dentro de nós; fora de nós existem objetos, movimento e luz. As constelações e sinfonias existem apenas porque existimos nós para observá-las e ouvi-las. O mesmo acontece com as palavras: quando as estudamos, encontramo-nos, em certo sentido, na mesma situação daqueles que estudam a luz – nunca ninguém a viu, vemos apenas os efeitos que ela provoca nos objetos; sabemos que ela existe porque é parcialmente reflectida por aquilo que – esquina após esquina, ladeira após ladeira – vai encontrando no seu caminho, tornando visível o que de outra forma não o seria. E é deste modo que um nada iluminado por um outro nada se torna algo para nós. As palavras funcionam da mesma forma: não têm, em si mesmas, conteúdo, mas se encontrarem alguém que as ouça – caminhar, desnorte, sonho, mãos, pedregosos, beijo – tornam-se subitamente algo.
Em 1944, Fritz Heider e Marianne Simmel, dois psicólogos americanos, levaram a cabo uma experiência, que foi publicada no «The American Journal of Psychology» desse mesmo ano. O que registaram nesse artigo ficou conhecido como a “Ilusão de Heider-Simmel”: apresentou-se a um grupo de voluntários uma sequência animada composta por dois triângulos e um círculo contido num espaço em branco; pediu-se-lhes depois que descrevessem o que tinham visto.
Todos os participantes afirmaram ter visto – naquelas figuras geométricas que se aproximavam, colidiam e afastavam – histórias de amizade e amor marcadas por disputas, rivalidades, decepções e inveja. Houve até quem mencionasse heróis e rivais, descrevendo as personalidades dessas personagens imaginárias e as suas angústias.
Eram simplesmente dois triângulos e um círculo movimentando-se num espaço em branco, mas nenhum dos participantes na experiência respondeu: “formas geométricas”.
Todos nós somos levados a interpretar a realidade que nos rodeia, projectando sobre ela emoções, desejos, propósitos e até biografias. Se algo à nossa volta se move – e nos comove – precisamos imediatamente de colocar ordem no que sentimos, para dar sentido ao caos. E, graças ao poder das palavras – acossadas pelos mais sinistros abismos – transformamos a vida em narrativas que nos fazem sentir um pouco mais seguros e um pouco menos perdidos. E então, sim, não temos medo.
Etimologicamente, «sinistra» (esquerda, em latim) é o ponto cardeal que aponta para o norte. O significado original (sinister) exprime a orientação relativamente ao ponto onde nasce o sol: de frente para a aurora, o lado esquerdo corresponde ao Norte, e o lado direito ao Sul. Por extensão, a Antiguidade identificava o Norte com tudo aquilo que é “inferior”, baseando-se numa suposta superioridade da mão direita sobre a esquerda: era do lado Norte da abóboda celeste que os áugures, interrogando os céus e o voo das aves, identificavam os maus auspícios e as maldições. O Norte enquanto escuridão, falha, ausência; espécie de nostalgia que aguarda – esperançosamente – o amanhã, quando o sol, erguendo-se a Oriente, de novo acordar os animais e as searas.
A linha que separa um desejo realizável de um desejo impossível é muito ténue, delicada, inteiramente confiada à responsabilidade de quem, não tendo mais que palavras, procura traduzi-las em acções. A medida para saber se, na vida como numa língua, o desejo pode, de mera possibilidade, transformar-se em eventualidade e depois em realidade, ou para todo o sempre esfumar-se na irrealidade, reside inteiramente na escolha, na ordem e, depois, na sorte.
Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos enclausurado na esfera da experiência, ao passo que um acontecimento recordado não conhece limites, porque se torna uma chave para tudo quanto veio antes e depois. Pois, no fim, é tudo luz.