A sociedade global e cosmopolita em que vivemos sofreu alterações profundas nas últimas décadas do século XX que deixam prenunciar mudanças culturais, societais e civilizacionais de grande alcance durante o século XXI. Refiro-me ao declínio demográfico e aos problemas específicos das sociedades seniores, aos efeitos perversos das alterações climáticas, à desconstrução do mercado laboral em resultado das transformações digitais, aos riscos globais próprios de um mundo multipolar, à crise da cooperação e segurança multilaterais. Refiro-me, ainda, à emergência e/ou recomposição de uma economia do quaternário, por enquanto difusa e nebulosa, associada ao universo das tecnologias da informação e comunicação e às redes sociais e, cada vez mais, no cruzamento entre a economia pública convencional, a economia social e solidária e a economia dos bens comuns colaborativos que, à sua conta, se anuncia cada vez mais presente e prometedora. Neste alinhamento, faz todo o sentido a interrogação seguinte: até que ponto as tecnologias da informação e do conhecimento serão apropriadas pela ideologia dos direitos de propriedade e até onde a ética dos comuns e do conhecimento é capaz de prevalecer?
As novas correntes de pensamento
É no interior deste complexo e eminente problema ético-político que se anunciam e emergem novas correntes de pensamento e geografias económicas mais inteligentes associadas à tecnologia das redes e às plataformas digitais.
Que terão em comum autores tão diversos como: Manuel Castells (a era da informação, a sociedade em rede e o poder da identidade, 1999), Yochai Benkler (a riqueza das redes ou como a produção social transforma os mercados e a liberdade, 2006), Lawrence Lessig (a cultura livre e o código versão 2.0), Michel Bauwens (a economia política da produção social pelos pares), Pierre Levy (a inteligência coletiva e a cibercultura, 1994 e 2007), Rachel Boltsman (a economia partilhada e o consumo colaborativo), Lisa Ganski (a economia mesh ou partilhada), Bernard Stiegler (a economia contributiva), André Gorz (o trabalho imaterial, 2005), Howard Rheingold (comunidade virtual e smart mobs, 2005), Clay Shirky (o excedente cognitivo ou a criatividade e a generosidade numa era conectada), Don Tapscott (a wikinomics ou como a colaboração em massa muda tudo), Chris Anderson (a cauda longa, os makers e a nova revolução industrial) e Jeremy Rifkin (a 3ª revolução industrial e a sociedade do custo marginal zero)?
Ou, ainda, num registo ligeiramente diferente, as diversas versões da economia do ambiente e recursos naturais, como a economia positiva (Rouer et Gouyon,), a economia circular, a economia da funcionalidade, a economia simbiótica (Delannoy) e, também, uma corrente mais radical ligada à economia dos recursos naturais, denominada de economia do decrescimento, de Serge Latouche até Tim Jackson, autor do relatório “Prosperidade sem crescimento”.
A culminar estas novas correntes de pensamento, temos o regresso dos comuns (Coriat, 2015), em versões também variadas: o renascimento e a renovação do movimento cooperativo, mutualista, social, solidário e voluntário traduzido em múltiplos empreendimentos e formatos organizacionais, por exemplo, em economias e sistemas de trocas locais (SEL) e respetivas moedas sociais, solidárias e complementares, mas, sobretudo, no sentido de uma nova economia colaborativa em que “a tragédia dos comuns”, de má memória, dá lugar à esperança e ao “otimismo dos comuns”, uma espécie de quarto sector pós-capitalista que cresce e alastra na zona de interface entre três subsistemas: a economia dos bens e serviços públicos convencionais, a economia social e solidária das instituições particulares de assistência social e a novel economia dos bens comuns colaborativos. Face à convergência destes três subsistemas, podemos estar, assim, no limiar de um ecossistema colaborativo socialmente muito inovador, fortemente apoiado nas TIC, nas redes sociais e no “poder lateral” do espírito colaborativo, cooperativo e mutualista.
O advento da sociedade colaborativa
Nesta linha de argumentação, a “Sociedade Co” é a sociedade do conhecimento, colaboração, comunicação, comunidade, comunhão, isto é, a sociedade dos comuns mas, também, da cooperação, confiança, contribuição, convivialidade e congratulação. O universo “Co” contempla uma gama muito variada de bens e serviços comuns: os consumos colaborativos de recursos ociosos (sharing idle resources), a produção social pelos pares (peer to peer production), os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores (sharing economy), o financiamento participativo (crowdfunding), os espaços comuns de criação criativa (coworking e makerspaces), a aprendizagem e a formação colaborativas (opensourcing), as moedas criativas e complementares (local currencies e creative money), entre outros empreendimentos da chamada economia colaborativa e contributiva (sharing ou collaborative ou contributive economy). Aqui chegados, o crescimento exponencial da economia colaborativa na última década e sobretudo após a grande crise de 2008 é um sinal evidente de que a emergência da sociedade “Co” é “um facto social total” da maior relevância cultural e civilizacional que vale a pena seguir de perto e estudar com a máxima prioridade.
Vejamos, mais de perto, este regresso dos comuns da informação e do conhecimento e a emergência vigorosa desta nova vaga cultural e civilizacional.
Em primeiro lugar, a estrutura comum a este movimento polissémico, mas convergente, reclama e trata de infraestruturas de banda larga ou autoestradas da informação, cultura digital disseminada, startups e plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, programação e software open source e modelos de negócio abertos.
Em segundo lugar, o movimento privilegia a cultura livre das redes (Lessig, 2004) e a sua inteligência coletiva (Levy, 1994 e 2007); de acordo com estes autores, só uma cultura livre de direitos de propriedade pode estimular a inteligência coletiva e colaborativa e a sabedoria das massas, em especial a produção social entre pares (peer to peer ou P2P) que transforma radicalmente a relação entre sociedade e cultura, razão pela qual a solução proposta é um “direito distribuído”, isto é, um licenciamento sob a forma de collaborative commons ou CC, uma solução hoje muito disseminada.
Em terceiro lugar, a produção social pelos pares também conhecida por P2P (peer to peer). Veja-se, por exemplo, o excelente trabalho realizado pela Fundação Peer to Peer, cujo principal mentor é Michel Bauwens, materializado no estudo intitulado Synthetic Overview of the Collaborative Economy, de 2012, publicado sob licença CC; a produção social pelos pares é uma consequência direta do direito distribuído e do poder lateral inscritos na cultura livre das redes e na inteligência coletiva que dela se retira.
Em quarto lugar, a sociedade do imaterial tal como é vista através do trabalho imaterial de André Gorz; em dois livros admiráveis, “La misére du presente, richesse du possible”, de 1997, e “L` immatériel”, de 2003, André Gorz revela-nos a emergência do capitalismo cognitivo e a condição da relação salarial na economia e na sociedade do imaterial que já aí está. O capitalismo cognitivo, feito de conhecimento, inteligência e imaginação, vai exigir de nós a mobilização total das nossas motivações, de tal modo que os trabalhadores com emprego/trabalho vão ser obrigados a “produzir-se constantemente” para poder corresponder às expectativas. O trabalho imaterial confundir-se-á, então, com esta “produção de si”.
Em quinto lugar, o conceito de excedente cognitivo de Clay Shirky (2010), acerca do modo como usamos a criatividade e a generosidade numa sociedade cada vez mais conectada. Como ativar, no tempo livre disponível, as nossas motivações intrínsecas e o nosso excedente cognitivo para realizar atos criativos e solidários que dão sentido a uma cultura de participação, para lá do tempo de trabalho/emprego e dos atos de consumo que marcam as rotinas e a monotonia do nosso quotidiano ?
Em sexto lugar, o movimento sharing and mesh muito bem ilustrado pelos livros de Rachel Botsman e Roo Rogers (2010), What’s mine is yours : the rising of collaborative consumption, e de Lisa Ganski (2012), The mesh : why the future of business is sharing ?. As empresas sharing and mesh usam as redes sociais e as plataformas digitais para partilhar e trocar, sob múltiplas formas com ou sem pagamento, os bens e serviços que estão ociosamente em nosso poder aguardando melhores dias e utilizações mais úteis. Os princípios do movimento sharing and mesh são simples : trocar recursos ociosos, privilegiar o acesso em vez da propriedade e o serviço em vez do produto, no final comprar menos e usar mais.
Em sétimo lugar, o movimento Wiki, na sequência do livro Wikinomics : how mass collaboration changes everything (2006), de Don Tapscott e Anthony Williams. O movimento Wiki, de que o exemplo mais notório é a construção da Wikipédia, refere-se à economia das multidões inteligentes, isto é, à crowd economy. Estão ocorrendo grandes alterações na estrutura, na estratégia e na força de trabalho das empresas e organizações. Para lá dos seus accionistas e trabalhadores directos, a empresa/organização deve contar com muitos outros colaboradores: os fornecedores, os clientes, os credores, os serviços públicos, os centros de investigação, os lobbies do ambiente e do consumo, os deveres para com os destinatários da responsabilidade social. O movimento Wiki trata da gestão deste ecossistema inovador, da sua engenharia social e das competências específicas da sua liderança.
Em oitavo lugar, o movimento Maker associado à nova revolução industrial, seja na versão micro de Chris Anderson (2012), The new industrial revolution, ou na versão macro de Jeremy Rifkin (2013), The third industrial revolution, how lateral power is transforming energy, the economy and the world. No caso de Anderson, a produção industrial está ao alcance de todos por via da tecnologia do desktop manufacturing com alguns equipamentos de design industrial e prototipagem e o acesso livre às comunidades de conhecimento online e aos serviços de outsourcing.
Finalmente, o anúncio quase profético da sociedade do custo marginal zero de Jeremy Rifkin (2014), The zero marginal cost society : the internet of things, the collaborative commons and the eclipse of capitalism. Seguindo de perto a lógica de pensamento de Jeremy Rifkin, os termos da equação estariam, agora, a inverter-se rapidamente. Neste caso, a fusão entre as tecnologias de informação e comunicação, a internet e as energias renováveis marcará o início da 3ª revolução industrial que assentará o seu crescimento em cinco pilares fundamentais: a mudança para as energias renováveis, a remodelação de blocos de edifícios para a instalação de sistemas inteligentes e autónomos de produção de energia renovável, a construção de uma enernet de energia distribuída para trocar e vender energia na rede, a conversão da frota de transportes para veículos eléctricos e células de combustível, a criação de uma economia do hidrogénio e outras tecnologias de armazenamento de energia.
Em 1968, Garrett Harding escreveu um artigo famoso sobre a tragédia dos comuns para exaltar, no fundo, o sucesso do capitalismo e a privatização dos comuns. Desta vez, Rifkin não apenas anuncia o eclipse do capitalismo (o custo marginal próximo de zero devido ao fortíssimo crescimento da produtividade), como o crescimento exponencial de uma economia dos comuns. Depois da internet dos bits estaríamos, agora, a caminhar para a internet das coisas. Muitos milhões de sensores estão a ser colocados nos objectos, a caminho da Grande Nuvem, como se todos os objectos tivessem vida própria animada para reportar aos humanos. No horizonte próximo, uma economia híbrida feita de capitalismo cognitivo, comuns colaborativos e muita internet dos objetos.
Notas Finais
Numa mutação civilizacional onde as plataformas tecnológicas desempenham o papel principal, pois são a placa giratória de todos os interesses em presença, estamos a assistir à transição paradigmática da sociedade dos objetos e mercadorias para a sociedade dos ícones, dos signos, sinais e símbolos, isto é, a uma transição para a (i)conomia. Na nova sociedade da informação, da inteligência, da internet, da imaginação, da inovação, dos bens intangíveis e imateriais, assistiremos a um trade off permanente entre a “velha economia dos produtos industriais e materiais” e a “nova (i)conomia dos serviços imateriais”, numa troca constante entre “produto e serviço” e entre “propriedade e acesso” e na qual a (i)conomia acrescentará cada vez mais valor à economia convencional que se reduzirá do mesmo passo.
Face a este novo ecossistema do conhecimento da era digital, pode legitimamente perguntar-se: quem será o homem do tempo novo que se avizinha, o homem das redes e dos écrans, da economia quaternária e da sociedade “Co”? Como facilmente se comprova, estaremos num futuro não muito longínquo, devido à transformação estrutural do emprego, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo “se produz a si próprio” numa espécie de corporate individualism. Estou em crer que regressaremos ao homem dos sete ofícios que o capitalismo industrial tinha extinguido para criar o profissional especializado do capitalismo industrial da nova era. E porquê o homem dos sete ofícios na era da internet?
Em primeiro lugar, por que a autoformação, oferecida em opensourcing estará muito próxima do custo marginal zero. Em segundo lugar, por que a escassez de empregos obrigará a repartir os horários de trabalho e a oferecer um leque mais diversificado de oportunidades. Em terceiro lugar, porque todo o mercado de trabalho se tornará muito mais volátil e adaptativo. Em quarto lugar, por que se tornará absolutamente imprescindível a complementaridade de rendimentos, monetários ou não. Em quinto lugar, porque as atividades da economia colaborativa permitirão ensaiar novas experiências, saberes e ocupações. Quer dizer, pluriatividade e plurirrendimento com suporte em plataformas colaborativas, cujas aplicações informáticas serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens que desejam entrar no mercado de trabalho intermitente. É aqui que entra o homem dos sete ofícios. De acordo com as suas capacidades e experiências ele irá inscrever-se em diferentes aplicações, geridas muito provavelmente por uma startup tecnológica recém-constituída, nas modalidades de horário, tempo de trabalho, pagamento, qualidade de serviço, que a sua presumida reputação lhe permitirá oferecer. Poderão ser sete ofícios, mais ou menos, mas dificilmente serão sete profissões.