Voltamos sempre ao que não conseguimos explicar, ao que nos surpreende constantemente, por mais avisados que estejamos. As leis da atracção não falham. Comigo, acontece, entre outras coisas, com a música e com os documentários sobre animais: sou capaz de passar horas – e, se pudesse, dias – a vê-los. Já vi dezenas e dezenas de vezes toda a espécie de imagens de crocodilos a apanharem gnus que atravessam, em migração, o rio, e fico sempre de olhar colado ao que vejo.  Penso invariavelmente nas mil razões que podem existir para esta atracção, mas as respostas que encontro nunca me satisfazem plenamente. Ainda ando à procura da boa, da mais geral e inclusiva, embora tanto tempo à espera dela me desespere um bocado de chegar a bom porto. Tenho algumas razões parciais, e sei também o que não é que me provoca a atracção. A natureza em geral, por exemplo. Gosto, como toda a gente, de paisagens, belas ou sublimes, mas sou perfeitamente incapaz de ficar muito tempo a vê-las, sentado num sofá, em frente à televisão. É outra coisa.

É preciso dizer que há maus documentários sobre animais – os da National Geographic, para citar um caso, estão longe de serem todos bons – e há documentários razoáveis que são estragados pela narração. Não me refiro sequer àquela absurda mania de dar nomes próprios aos animais – “a Malika parou com as suas filhas Tuka e Ziga junto a um grupo de antílopes…” -, estou antes a pensar em narrações, como, por exemplo, a de uns bons programas que a SIC passa, que, sem dúvida com as melhores intenções do mundo, adoptam um estilo ternurento, com um sorriso cúmplice a ornar a narração, muito semelhante ao que a Dra. Felisbela Lopes (de quem sou fã) usa para falar dos políticos, esses marotos que, quando dizem uma coisa, o fazem sempre com uma intenção que não revelam e que ela nos explica.  Acho o tom um insulto à dignidade dos animais (embora não dos políticos). Não menos irritante é o estilo que abusa de pathos que apanhei num dvd da National Geographicsobre migrações (um tema apaixonante) que me chegou, por erro meu, em versão francesa. Os animais, a acreditar no narrador, viviam numa angústia perpétua e parecia que tinham saído todos, não da arca de Noé, mas do Ser e tempo de Heidegger. Vi um quarto de hora e parei, deixando o resto das seis horas para quando o PAN me contratar para escrever um tratado sobre o existencialismo animal, um tópico essencial que representa infelizmente uma lacuna gritante no seu actual programa.

Felizmente, há muito bons documentários. Há um, da BBC, sobre o parque natural de Yellowstone que é uma obra-prima absoluta, escrita e ilustrada na perfeição. E há as maravilhas inacreditáveis que são quase todos os documentários feitos ou narrados pelo meu velho amigo David Attenborough. Ainda esta semana vi a história de uma aranha de Madagáscar, do tamanho de uma unha, que produz e lança um fio de seda de 25 metros sobre um rio, que se prende a uma árvore na outra extremidade e que ela atravessa em seguida até ao meio, para aí construir a sua teia, onde apanha os insectos que, justamente, só por aí passam. E, já agora, também a obra de um peixe japonês que constrói, com as barbatanas, uma fantástica escultura na areia para atrair a fêmea. Os programas de Attenborough são fabulosamente filmados, o som dos animais perfeitamente captado, e a narração formidavelmente inteligente e, sem uma falha, no tom certo. Não se vê aquilo para aprender nada (embora se aprenda), vê-se apenas para se ficar maravilhado, mergulhado numa incredulidade que, paradoxalmente, satisfaz o espírito.

Essa satisfação vem certamente da extraordinária diversidade animal, da imensa profusão de cores, formas e seres que observamos e à beleza da qual somos sensíveis. E vem, ao mesmo tempo, da perpétua redescoberta do sentimento da unidade da vida e da afinidade que nos liga, no comportamento e por vezes nas formas, a todos esses seres. Somos em muito a eles semelhantes, no próprio desejo da vida que neles descobrimos de forma indisfarçada e ostensiva (e é por isso que achar-lhes uma graça ternurenta é, no mínimo, falhar o alvo). Mas isso não basta para o maravilhamento. É preciso que igualmente experimentemos a irredutibilidade da sua existência ao nosso modo de ser. Um filósofo perguntou-se um dia “como é ser um morcego?”. A resposta dele é que não podemos saber (ele quer ir muito mais longe do que esta simples resposta, mas isso não vem ao caso para aqui). A estranheza, fonte de beleza e de prazer, que os animais nos provocam, é como que esta pergunta mil vezes magnificada: como é que é ser um animal distinto de nós? Como é, por exemplo, ser um urso polar que longamente olha o céu? O que é que ele vê? Como é que ele existe?

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Reli várias vezes, nesta última semana, um dos maiores poemas do século XX, as Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke (do qual existem pelo menos duas traduções portuguesas, por razões distintas entre si muito recomendáveis: a de Paulo Quintela e a de Vasco Graça Moura). Nele se cruzam vários mundos – o dos anjos, o dos seres humanos, mortos e vivos, o das marionetas e o dos animais. Numa leitura possível do poema, ele descobre um percurso que vai da busca da transcendência à descoberta da felicidade da imanência terrestre. “Estar aqui é glorioso”, “Estar aqui é muito”.

Antes de chegar a esta final conclusão reconciliadora, Rilke opõe os seres humanos aos animais. Os seres humanos, atormentados pela consciência da morte e da sua efemeridade, vivem no interior de um “mundo interpretado”, no qual nunca verdadeiramente se sentem em casa. Não há verdadeira unidade, tudo é separação. Nada no mundo humano é o que realmente é. Nem as crianças nem os amantes verdadeiramente escapam à lei da separação: também eles são, neste mundo, espectadores, separados do espectáculo que contemplam. Na Oitava Elegia aparecem os animais, cuja existência é imediata e não obscurecida pela separação que nos atormenta. Os animais vêem aquilo que misteriosamente Rilke chama o Aberto. O Aberto, conjectura-se, é aquilo que se dá imediata e plenamente, a própria existência que não se encontra fechada num casulo interpretativo. Só através do olhar dos animais nós temos acesso a esse algo não interpretado que é o sentido pleno da existência.

As Elegias acabam, como disse, com a descoberta da magnificência que é, para os seres humanos, existirem na terra. Portanto, por via indirecta, também eles finalmente têm acesso a algo próximo do Aberto que se ausculta no olhar dos animais. Mas permanece que é nos animais que encontramos esse olhar, que é o segredo da sua irredutível estranheza ao nosso mundo fechado. Francamente, apanho-me a pensar que é essa estranheza, que subsiste para lá de todas as afinidades, que, juntamente com a diversidade das formas e a abundância das cores, desperta em nós o maravilhamento com o mundo animal. Há ali uma existência pura que nos é, literalmente, inapropriável. Não sei se essa é a tal grande razão de que ando à procura para justificar a minha atracção pelos documentários sobre animais. Mas talvez ande mais perto do que o resto de uma explicação.

PS. Surpreende-me que ninguém, em toda esta conversa em torno da morte de Otelo Saraiva de Carvalho, tenha referido algo que é fundamental para perceber o mau e o péssimo que ele fez depois do 25 de Abril: a sua tontice. É um bom exemplo da regra geral que o fanatismo não é uma condição imprescindível para o mal e para o crime político. A tontice convenientemente fomentada basta. E, já agora, isso também explica que ele tenha saído de um longo período de ditos e de feitos mais que lamentáveis (estou a ser extraordinariamente delicado, se pensarmos nos muitos assassinatos das FP 25 de Abril), permanecendo, à sua desgraçada maneira, uma personagem não completamente antipática, como inevitavelmente aconteceria se fosse um fanático, como tantos havia, e há, por aí.