1. Nem sequer houve pré-aviso, a vida mudou de cor num minuto, vesti outra pele, passei a chamar-me “familiar de referência.” Aprendi a circular em infindáveis corredores, a não confundir esquinas e acertar nos elevadores. A lidar com aquele súbito desconcerto, tateando a vida em vez de a viver. Tateando a abissal diferença entre o conhecido e o vivido e era implacável a diferença entre uma coisa e outra. Tudo aquilo era agora comigo.
2. E, subitamente, lembrei-me: foi há quase três anos, em Setembro, estava uma manhã azul e radiosa, íamos a caminho do Douro. Aquela coisa da felicidade. Nisto toca o telefone, era o filho de Londres, tão cedo?, pensei, ”houve uma chatice no nosso metro de Parsons Greens, havia uma bomba mas está tudo bem, o Luís foi no metro antes, já está na escola, está tudo bem…”.
Tudo bem? Garganta seca, a voz que não saía, o trovão da descoberta: seria aquilo o pânico?
“Não podemos sair de casa, as ruas estão fechadas, num segundo ficámos rodeados de polícias, ninguém entra, nem sai”. De repente era o “vivido”, em vez do “sabido”, a notícia não viera de um écran televisivo mas da voz falsamente tranquila de um filho a dizer-nos que o seu filho apanhara o metro anterior. Com a mesma velocidade com que a polícia inglesa bloqueara meia dúzia de ruas londrinas, a nossa condição de longínquos espectadores do terrorismo nos telejornais, transformara-se em “parte” implicada: prosaicamente a caminho do Douro, numa manhã já não doce, prováramos a diferença.
3. Desta vez, no Hospital de Santa Maria, também. Primeiro foi o “de repente” com que tudo sempre começa: a angústia pelo telefone, o voo para casa, a cabeça a andar à roda, “tudo menos ir para um hospital privado”, a chegada do INEM. Um clássico, só que meu, pessoal, intransmissível. Quantas vezes ouvira enaltecer o INEM, a competência do Serviço Nacional de Saúde, a excelência clínica dos hospitais públicos? Muitas, mas de longe, à distância. Idas esporádicas a Santa Maria, algumas à Urgência. O trivial, nunca uma emergência. Agora era. Sucede porém que o que ali vi e vivi, durante cinco dias, foi tão fora do comum para o que (apressadamente?) apelidamos de padrão nacional, que tenho a responsabilidade de dar testemunho. Faço-o porém com aquela consciência atrapalhada e constrangida de que este escrito não é senão uma mísera, quase inverosímil gota de água no mar de reconhecimento que devia embalar o grupo de especialistas com quem convivi.
4. O quadro justamente saía do ordinário, do comum, do habitual quadro português: nunca houve alteração da ordem, alarido, precipitação, desmazelo, incúria. Gestos desnecessários, conversa fiada. Cada clínico e clínica dos vários com quem lidei, a começar nos do próprio INEM até aos serviços onde estive – SO e UTIC — sabia o que estava a fazer, usando apenas das palavras necessárias e dispensando as supérfluas. Apercebi-me (o tal “vivido”) de como está bem sincronizada a coreografia desde que duas ambulâncias entraram no nosso pátio, até ao momento em que, pouco mais de uma hora depois, já em Santa Maria, uma equipa previamente avisada e devidamente informada, entrava em acção. Sentada solitariamente num banco de plástico azul num corredor semideserto, também percebi o que significa “estar entregue”: era aquilo. E “aquilo” — a segurança que eu sentia — não tinha preço.
Escrevo este texto porque, numa altura de extrema dificuldade na vida de um servidor público médico, enfermeiro ou auxiliar — dadas as imponderadas cativações que ocorreram para Centeno brilhar em Bruxelas e Costa aqui — é preciso anunciar que esta magnífica capacidade de resposta e esta altíssima competência no “modus operandi” clínico também relevam do puro milagre da dedicação. Se lhe somarmos a consciência profissional, ética e cívica com que ali se oficia, talvez comecemos a espantar-nos menos com aquilo a que erradamente chamaríamos outros milagres e que são apenas rotinas responsavelmente bem organizadas: uma atenção permanente – o que na imensa, inconfundível solidão dos hospitais, gera a única coisa de que se precisa que é a confiança; a pontualidade; a ordem que não se vê mas tudo rege; o asseio enfim, do chão a brilhar, à cama ou ao duche, e quem está a espera disto num hospital público superlotado e no momento delicadíssimo que aflige hoje o sector publico da Saúde?
Deve haver poucos sítios no mundo onde se possa entregar assim um coração.
5. E também deve haver poucos lugares tão transversais como um hospital e se há coisa que guardei desta “viagem” foi a memória dela. Memória compósita: cruzamentos de vida com desconhecidos da enfermaria que na manhã seguinte passavam a indispensáveis companheiros; desabafos improváveis, súbitas generosidades, risos, comentários, apreensões, o jogo da sueca ao serão, na mesa já livre dos tabuleiros do jantar, a oferta de jornais e mimos, as diversas profissões contadas por eles próprios, do “feirante de Alfeizeirão” ao “agente imobiliário” de Lisboa que com invejável à-vontade liderava o que quer que fosse na enfermaria. Nada porém que se comparasse aos 3-0 do Benfica-Dínamo de Zagreb, televisivamente partilhados ali mesmo – em surdina claro está, mas mesmo assim: seis matulões de pijama de azul, quase todos “encarnados” menos um idoso que torcia pela Académica de Coimbra e outro que era do Sporting. Às vezes olhando para aquele desconcertante pequeno mundo, perguntava-me se era eu que ali estava: era? Nunca nos surpreenderemos o suficiente com a inesgotável capacidade da vida em gerar o improvável.
6. Melhor foi impossível? Não, também houve parecido com “pior”. (Se eu estivesse em maré de humor este texto poder-se-ia até chamar “melhor é impossível e… pior também”, mas não estou.) Refiro-me a este singular (e omnipresente) lado português das coisas: por muito saber, alta competência e altruísmo que haja – e era o caso, naquele serviço e naquele hospital — a nossa lusa “especificidade” acaba sempre, com maior ou menor protagonismo, por se mostrar. E embora nada se pudesse fazer sem o trabalho daquelas dedicadas enfermeiras, auxiliares e empregadas, espantava o ruído ensurdecedor: vinha das copas, dos corredores, das conversas vivazes entre todas elas. E das suas vozes demasiado audíveis onde misteriosamente e sem necessidade aparente, se preferia o grito à fala. Um dia perguntei ao director do Unidade se tal ruído não lhe lembrava — por exemplo — Las Vegas, tal a animação. Não lembrava: “As instalações já antigas do hospital sendo espaçosas e amplas como eram, criavam uma ressonância e um trânsito que dificultava o silêncio”. Talvez. Mas – por falar em antigo – fiquei com pena daquele “pior” que — porventura por se ter perdido o “antigo” sentido da hierarquia ou a autoridade ter caído em desuso– maculava uma óptima impressão.
Não seria difícil humanizar ali o tom de voz, não custaria um cêntimo.
Afinal bem mais difícil é deixar lá o coração. Entregue.