Os Jogos Olímpicos permanecem reféns de um conjunto de preconceitos que importa desmistificar, em particular uma noção cândida sobre uma putativa e sacrossanta pureza, autenticidade e infalibilidade, própria dos deuses do Olimpo.

O desporto é uma atividade humana e os Jogos Olímpicos são uma realização humana. Inevitavelmente espelham e traduzem os paradoxos do pulsar dessa condição e, por isso, representam a expressão mais fiel de um fenómeno cujo desfecho assume apaixonante imprevisibilidade.

Apesar do conjunto de instrumentos e de saberes que a ciência e a técnica procuram recrutar para os palcos desportivos, permanece em último reduto o enigma do confronto do homem com os seus limites e com as suas falhas. Com a consciência de si e o acaso das circunstâncias com que se depara.

E neste sentido os Jogos Olímpicos abrem as portas à reflexão sobre a extraordinária dimensão e amplitude deste fenómeno nas nossas vidas. Sobre as suas contradições e paradoxos, capacidades e incapacidades em internalizar o capital emocional que envolve milhões de espectadores e praticantes e representa, partindo da vivência dos atletas, muito mais do que apenas uma competição desportiva.

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Nisso nos lança cada edição dos Jogos Olímpicos, com vitórias e derrotas. Com casos e outras estórias. Com alegrias e tristezas. Mas lá no fundo com a inquietante questão sobre o que move os atletas, homens e mulheres, a abdicarem de tanto, dispondo-se a sofrer para superar os seus próprios limites. O que os faz correr, nadar, saltar e lançar cada vez mais e melhor.

E, à medida que assistimos a cada edição dos Jogos, surpreendemo-nos e inquietamo-nos. Seja com a condição do atleta como um produto perecível, com prazo de validade no espetáculo desportivo global. Seja com a capacidade de se mobilizar um país e forjar a sua identidade através dos sucessos e frustrações dos seus representantes. Seja com a dureza, a frustração e as dúvidas com que se termina uma carreira de alto rendimento para se iniciar uma outra vida.

Mas também com a reconfiguração dos laços familiares, onde a polarização das relações de cumplicidade e confronto entre atleta e treinador, marcada em etapas decisivas na construção da carreira destes atores, assume um cariz estruturante para o futuro de ambos. Que umas vezes continua e em outras termina.

É assim o desporto e o espetáculo dos Jogos Olímpicos que lhe está associado. Um espaço social onde a sua construção está condicionada pelas dinâmicas do conjunto de interesses que o contextualizam: interesses desportivos, mas também, crescentemente, comerciais, mediáticos e políticos.

Os Jogos Olímpicos acolhem todos estes variados interesses e a competição que nele decorre, deixa de ser apenas um jogo, onde se confrontam e se avaliam capacidades e talentos desportivos. O rendimento desportivo, base sobre a qual se estrutura a competição e se constrói o espetáculo, tem um valor desportivo mas encerra também um valor comercial/económico e, em algumas circunstâncias, assume uma clara dimensão política.

É verdade que nem sempre assim foi. Mas, a partir do momento em que a prática desportiva atingiu um certo nível de qualidade e se comercializou, tudo mudou. Nos últimos tempos a mudança foi tão radical que chegámos ao ponto de uma simples comparação entre o seu passado recente e o seu passado anterior poder criar a ilusão de estarmos perante dois fenómenos distintos. Mas não. Estamos perante o mesmo fenómeno que, como todos os produtos sociais, sofre as consequências da evolução do tempo. O desporto mudou porque o tempo social, cultural e político mudaram.

E hoje, como ontem, assistimos aos desfiles, aos cortejos, ao impacto visual das equipas e dos atletas, à sua força emotiva, ao seu enquadramento musical com orquestras e coros, à mesma liturgia, quiçá até ao mesmo sentido religioso, mas com conteúdos culturais distintos, com outras aspirações, com outro modo de sentir e viver o desporto.

A cultura desportiva atual vive contaminada pela produção do espetáculo supermediatizado, com uma enorme capacidade de atração de grandes públicos, explorado pelo mundo dos negócios e palco de afirmação e visibilidade política de países e nações.

Como um dia escreveu José Maria Cagigal, “a comercialização do espetáculo desportivo não é perigosa porque atenta contra valores do desporto mas porque se converteu num produto que necessariamente precisa de ser consumido para ser rentável”.

Ontem, como hoje, o fascínio dos Jogos permanece. O risco não está ausente.