O ambiente político está tão inquinado, entrincheirado e a funcionar em lógicas de claque de futebol que se torna impossível conduzir uma discussão com o mínimo de racionalidade e seriedade.

O problema não está em ter permanentemente em cima da mesa propostas políticas e ideológicas alternativas para avaliação e debate, como é saudável numa democracia. Trata-se da partidarização cega e de facção com que se aborda toda e qualquer questão.

Em Portugal confundem-se com frequência políticas com política, governos com partidos e os interesses do país com os interesses partidários de ocasião.

A discussão sobre as supostas sanções que Bruxelas pode aprovar a Portugal pela violação do défice do ano passado são um bom espelho disso mesmo. De um ponto de partida consensual contra as sanções na generalidade do espectro partidário e ideológico — consenso raro que costuma estar reservado para votos de pesar sobre tragédias ou o desaparecimento de algumas personalidades — conseguimos chegar a um deprimente “saco de gatos”. E todos são contra as sanções. Podemos imaginar se não fossem.

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Estou em crer que se não tivesse havido uma mudança de governo e de maioria ideológica pelo meio a questão estaria a ser tratada de outra forma, mais racional, mais honesta e certamente mais eficaz no que realmente interessa: a defesa dos interesses do país. Mesmo que os dados de base fossem rigorosamente os mesmos: violação do limite do défice no ano passado e um orçamento deste ano que levanta muitas dúvidas sobre o seu cumprimento.

Mas o governo mudou e tudo, mas mesmo tudo, serve de arma de arremesso partidário. Quase sempre de forma enviesada, muitas vezes de forma infantil.

O essencial das sanções é objectivo e está bem espelhado e explicado neste trabalho da Margarida Peixoto, aqui no Observador. É um óptimo guia para saber o que está em causa, porquê e com que argumentários pró e contra.

Primeiro é preciso nunca perder de vista que este regime resulta de tratados, pactos e acordos que Portugal legitimamente subscreveu. Podemos discutir se o devíamos ter feito — tínhamos alternativa de facto? — ou se, no futuro, devemos desvincular-nos deles — para além da tirada referendária do Bloco de Esquerda ninguém parece disposto a isso. Mas isso são “ses” irrelevantes para esta discussão. A matéria de facto é que existe um regime sancionatório em vigor que também tem a nossa assinatura e não devemos ficar impressionados quando ele é accionado.

É entendível que a Comissão Europeia queira aplicar as regras que estão em vigor. Nunca o fez até hoje e essas regras foram mudando. Se não o fizer, e de forma “cega” para todos — chamem-se Portugal ou França, Espanha ou Alemanha –, Bruxelas deve rasgar de vez os tratados e pactos. Nada é pior para a credibilidade das instituições do que regras que são impunemente violadas.

Se temos ou não atenuantes para apresentar, é outra questão. Temos e devemos servir-nos delas para evitar ao máximo qualquer sanção.

Depois, a sanção é sobre o país e não sobre o governo A ou B. É sobre um país que violou os limites em 2015, resultado que espoletou o procedimento das sanções.

Mas também não me parece absurdo que a Comissão Europeia tenha esta abordagem: “Vocês violaram o défice em 2015 e isso está sujeito a sanções que podem ser accionadas de forma automática. Mas se quiserem dar-nos garantias que agora vão mesmo cumprir as metas fixadas podemos anular, atenuar ou adiar as sanções. Se derem essa garantia e não a cumprirem daqui a um ano cá estaremos de novo para tomar a decisão”.

Foi assim que vivemos nos últimos anos, a garantir para o futuro próximo a correção dos desvios do passado e a “passar” nas avaliações da troika também com o crédito da promessa sobre o que faríamos a seguir.

Se tudo isto se estivesse a passar com o mesmo governo, decerto acharíamos razoável, dentro daquilo que é o funcionamento dos controlos orçamentais na União Europeia.

O que inquina tudo, como se está a ver, é a insane guerrilha partidária depois de termos mudado de governo, com o PS a responsabilizar o governo do PSD/CDS pelas potenciais sanções e estes a dizerem que, a haver penalizações, é porque este governo dos socialistas não fez o que devia para as evitar.

Entendamo-nos. Se houver sanções, a responsabilidade política é do governo anterior, do PSD/CDS. Não tivéssemos violado os limites do défice no ano passado e este cenário não se colocaria, independentemente da forma como está a decorrer a execução orçamental deste ano e de todos os riscos que lhe são apontados. O mecanismo sancionatório só existe agora por causa dos dados de 2015. Em relação ao orçamento deste ano, falaremos a partir de Janeiro de 2017.

Mas pode acontecer que a desconfiança de Bruxelas em relação à consistência da execução orçamental deste ano inviabilize uma redução, anulação ou adiamento das sanções? Pode, mas não temos a certeza. Não conhecemos com rigor a conversa que está a ocorrer nos gabinetes entre Bruxelas e Lisboa para perceber se a Comissão pode fazer, de facto, depender uma coisa da outra.

Se assim é, está visto que António Costa não vai apresentar medidas adicionais para este ano para que o país possa escapar a uma penalização referente ao défice do ano passado. Desta forma, não só pode responsabilizar o PSD/CDS pelas penalizações como vai mantendo a sua narrativa de garantir que as contas deste ano estão certas, que as previsões estão a ser confirmadas pela realidade e que não precisa de avançar com medidas adicionais. Parece que está cada vez mais sozinho nesta avaliação, já que o próprio Mário Centeno começa a avançar com justificações para rever as contas mais à frente. Está no seu direito de manter a peça em cena e o Brexit terá as costas muito largas quando tentar justificar que “o mundo mudou”.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com