No termo do campeonato do mundo de futebol de 2018, o pivot do programa noticioso/humorístico “Daily Show”, Trevor Noah, proferiu uma piada (o programa vive de ridicularizar a vida política), que era qualquer coisa como “A França ganhou o campeonato do mundo, parabéns África!”. Noah nasceu na África do Sul, de uma relação proibida durante o apartheid entre uma mulher negra de etnia xhosa (isto deve ser dito com um estalido quando dizemos o “tcho”) e um homem branco de origem suíça. A piada era só uma piada, mas como nos tempos que correm nada é só uma piada, levou a um protesto formal do embaixador da França nos EUA.
A verdade é que se Noah não fosse metade negro, tal piada nunca teria acontecido porque cairia o Carmo e a Trindade. Mas sendo metade negro, a hordas americanas do politicamente correto deixaram a piada passar por debaixo do lápis azul da sua infinita indignação. Surpreendentemente, foi o aparecimento do protesto da embaixada francesa que, sendo o apresentador etnicamente correto para dizer uma piada daquelas, parece ser despropositado (e é, porque não deixa de ser uma piada). No entanto, a relativamente curta carta (divulgada no Twitter, pelo próprio embaixador) é uma enorme pedrada.
Diz o embaixador que os jogadores franceses não têm outra cor que não seja o azul das camisolas e que a França não é um país como os EUA, onde as pessoas são definidas com hífen (queira ele referir-se a afro-americano ou latino-americano), chegando a acusar o apresentador de associar o ser francês, a ser branco. Por outras palavras, acusa Noah de racismo, coisa que, pela sua história pessoal, não deve ter caído no estômago por aí além. Colocando-me na pele do embaixador e lembrando-me que o Éder espetou aquele golo em pleno Stade de France, com muitos mais jogadores nascidos no estrangeiro que a seleção francesa tinha no Mundial de 2018, também não admitiria que me dissessem que o golo de Portugal foi marcado por África. Mais, houve algum português que tenha reparado sequer na cor da pele de quem chutou a bola?
Lembrei-me disto depois dos acontecimentos de Moscavide, em que um pai de três filhos menores foi assassinado. Não o escrevi na altura, porque achei que não o deveria fazer tão próximo do evento, mas tenho que o fazer antes que em Portugal se comece a hifenizar as pessoas e a título de apelo a quem é vítima de racismo. Sim, porque existem vítimas de racismo, disso não haja dúvida nenhuma.
Vamos ser racionais. Era bom que não tivesse havido colonialismo e escravatura? Para aqueles que o sofreram na pele, claro que sim. Mas agora estou a falar daqueles que passados 400, 200 ou 60 anos vivem entre nós. Das duas uma, ou achamos que ser branco é uma condição para ser português e então vamos resolver o problema de quem não é branco e, logo, vítima diferida do colonialismo; ou então, ser português não tem nada a ver com a cor da pele e, na realidade, todos seremos, ou não, julgados pelos crimes dos portugueses de há 500 anos, sejamos brancos, pretos ou azuis. Eu sou da opinião que português não tem cor e, por isso, os negros são tão culpados do colonialismo como eu porque, como é óbvio, são tão portugueses como eu. Ou seja, nada a fazer.
Mesmo assim vamos, por absurdo, dizer que há portugueses especiais porque, há 100 anos, o seu trisavô da parte do bisavô, do lado do avô materno, nasceu algures entre Joanesburgo e Rabat. Algo de substancial relevância para nós, agora, andarmos a perder tempo com isso. Vamos então fazer o quê? Negar a sua nacionalidade e recambiá-lo para a santa terra do seu trisavô escuro? Ou vou indemnizar estes portugueses “especiais”, assumindo as culpas do meu próprio trisavô que, se calhar, era tão africano como o deles, mas a lotaria da minha genética me fez ligeiramente mais claro ou com cabelo mais liso? Isto faz-me lembrar aquela estupidez de se andar a condenar as deputadas do Bloco por o pai delas ter assaltado uma delegação do Banco de Portugal há 60 anos.
Deixemo-nos, por isso, de frescuras, como dizem os brasileiros. Hoje somos todos portugueses, com tantos problemas para resolver, que é criminoso andarmos a arranjar problemas com os nossos trisavós que nunca conseguiremos resolver, até porque esses problemas são, objetivamente, estúpidos e inexistentes.
Ou seja, tal como refere o embaixador francês com propriedade, a cor da pele não define ninguém. E não precisamos de ser ambiciosos se dissermos que se a seleção portuguesa fosse totalmente composta de jogadores pretos, amarelos ou brancos, tal não seria sequer tema. Seria, aliás, sinal de profundo racismo se alguém resolvesse fazer notar a cor da pele de um jogador da seleção, para o bem ou para o mal.
Voltando ao caso de Moscavide, quando li a notícia, confesso que nem reparei na questão da cor da pele. Li um pai que deixa três filhos menores por uma discussão de porcaria com um velho que parecia já estar a perder o juízo, de acordo com as notícias. Mas a quantidade de gente que veio tirar renda da cor da pele da vítima foi algo de chocante. Ainda que a motivação do assassino fosse racista, eu não consigo perceber como é que tanta gente relevou que morreu um negro. E o fez com a presunção de que estava a lutar contra o racismo, o que me faz trazer a lógica novamente para cima. Se eu for, individualmente, racista, o facto de me dizerem que morreu um negro é pior para mim? Não, na verdade se for racista, no extremo até acho bom. Não sendo racista, dizerem que morreu um negro o que é que me dá? A simples perceção de que os media racistas portugueses viram morrer um negro onde tombou um português, pai de três filhos menores. Na melhor das hipóteses, dizerem-me que morreu um negro é sinal de racismo. Tal como quem diz “A França ganhou, parabéns África”.
O deixarmos passar isto, como nos EUA se deixou passar a piadinha de Noah pelo facto de ser negro e não pelo facto de ser só uma piada, vai levar-nos à hifenização. Ele pode, porque é luso-africano. Ele não pode, porque é luso-ucraniano ou luso-magrebino, como eu devo ser. Referir a cor da pele da vítima, ou referir a cor da pele do criminoso só serve para cimentar a irracionalidade da coisa, procurando simpatias de grupo onde não deveriam existir. Se as vítimas são maioritariamente brancas, eu devo sentir-me ameaçado? Ou se os criminosos forem maioritariamente negros, devo deduzir uma predisposição genética para o crime? Uma completa imbecilidade.
Os EUA vão passar décadas, no mínimo, até se livrarem da estupidez de referir qualquer pessoa pela cor da pele. Seja por que motivo for, bom ou mau, hifenizando as pessoas como se o cérebro de cada um fosse definido pelo continente onde um dia o trisavô andou. A ameaça na Europa é entrarmos no mesmo registo. E reparem que não é da extrema-direita que vem a ameaça, é da esquerda. E são esses hifenizadores que devemos combater, tenham lá a cor que tiverem.