Eu cresci num bairro social, com tudo o que isso tinha de bom e de mau. E, entre o que tinha de bom, estava a diversidade. No meio da rua onde brincávamos e na praia onde todos íamos, éramos gordos e magros, pretos e brancos, grandes e pequenos. Como acontece entre crianças e adolescentes, a diferença não é escondida. O gordo é gordo, o preto é preto e o pequeno é pequeno. Faz parte daquela ‘crueldade’ dos adolescentes de implicar com quem foge à norma por alguma razão. Ninguém dizia antes de irmos jogar à bola, se alguém tinha tocado em casa do ‘afrodescendente’ ou antes de ir para a praia se tínhamos chamado o ‘menino forte’. Era o preto e o gordo. E eu era o gordo.

Agora, naquilo que era importante, naquilo que interessava, que era a integração de quem era diferente nas nossas coisas, fossem elas jogar futebol ou algo mais indizível, sabíamos todos que as pessoas não são definidas pela cor da pele ou pela origem dos pais. Note-se que estou a falar de miúdos nos seus 15 anos que não o saberiam dizer de forma clara, mas que sabiam que o fundamental era, repito e vou repetir mais vezes, que as pessoas não são definidas pela cor da pele (ou pelo metabolismo, ou pelo apetite, ou pelo sexo…). O nosso respeito pelo preto não era determinado pelo facto de lhe chamarmos preto ou afrodescendente (com a minha pinta de marroquino devo ser ‘magrebinodescendente’ pelo léxico moderno), mas por aceitarmos que a diferença dele era irrelevante para aquilo que eram as nossas coisas.

Cresci a saber aproveitar este conhecimento, de que a diversidade é vantagem. Na empresa que ajudei a criar, e que emprega hoje 230 pessoas, já passaram pessoas de mais de 20 nacionalidades e fazemos disso ponto de honra. Quando falo na empresa, uso o número como um dos feitos. De camaroneses a alemães, de lituanos a brasileiros, de turcos a indianos. Pessoas de todas as tonalidades de pele, credo religioso e alfabeto. E, sabendo que hoje trabalham lá duas centenas de mestrados e uma quinzena de doutorados, podemos gritar ao mundo, mais uma vez, que a cor da pele não define a pessoa.

Isto porque nasceu recentemente uma polémica de criação de quotas em função de aspetos étnicos, com excessos racistas a todos os níveis, quer na defesa das quotas, quer na sua oposição, sendo que achei que deveria dar este pequeno contributo, quer do puto estúpido que conviveu com gente de todas as cores, quer do profissional que trabalha e contrata gente de todas as cores que, devo confessar, é experiência que falta aos dois lados.

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O facto de ter crescido no bairro social e de o ter feito no pós 25 de Abril com inúmeros colegas refugiados das ex-colónias fez com que o insucesso escolar fosse a norma à qual fui escapando, miraculosamente, entre os buracos da chuva, coisa que não aconteceu com a grande maioria dos putos com quem brincava. Ao chegar ao 10º ano sem chumbar, fui mandado para uma das turmas da manhã. A surpresa foi que os meus colegas novos tinham todos diminutivos pelos quais os professores os tratavam, do tipo ‘Kiki’, ‘Cacá’, etc. Eu, e mais dois, éramos os ‘pretos’, os meus novos colegas que vinham das famílias bem da terra ou eram filhos dos professores, gozavam dos melhores horários e eram acompanhados pelos melhores professores da escola desde o 7º ano.  Na passagem para o 12º, já só sobrava eu no meio dos ‘Kikis’ e dos ‘Cácas’. Obviamente, a tonalidade da turma era rigorosamente pálida.

O resultado deste processo, desta seleção natural a que anedoticamente chamamos de escola para todos, não deitou fora os pretos. Deitou fora os mais pobres, aqueles cujos pais não viviam nas zonas privilegiadas da terra, não tinham por vizinhos os professores. Que, pelas circunstâncias do país, incluía na altura quase todos os pretos, retornados e outros moradores em bairros sociais. O facto de à entrada da faculdade sermos todos brancos, não resultava de nenhum processo de eliminação étnica, era — e é! — simplesmente o contexto produzido pela escola secundária. A nossa escola do estado rejeita os mais fracos que, por motivos históricos, inclui os pretos. Já os emigrantes de leste, várias vezes mais educados que nós, sabem compensar em casa a porcaria de escola que entregamos aos filhos deles.

Ser a favor de quotas enquanto se acabam com os contratos de associação na educação é a falsídia extrema. O que os desfavorecidos precisam é de educação de primeira, não é de reforço dos direitos sindicais dos professores ou reduções de horário destes. É fácil reforçar-se o contexto e, depois, põe-se a culpa na discriminação obtida pela leitura do próprio contexto. Há poucos pretos no topo de sociedade? Porquê? Há muitos à entrada da universidade? Sendo mais provocador, qual a percentagem de pretos professores no ensino do estado ou quantos alunos de outras etnias esperam favorecer pela redução de horários na função pública?

Repare-se no que é que isto significa. Na tentativa de esconder que são os pobres que são expulsos da educação por um serviço deplorável, coloca-se a culpa na cor da pele, como se o serviço deplorável fosse pior para os pretos do que é para os brancos. Até acredito que estas pessoas defensoras das quotas sofram apenas de iliteracia matemática e nem se apercebam que estão a dizer que as pessoas são definidas pela cor da pele. Mas isso não os faz menos racistas.

Enquanto empregador que absorve o máximo de diversidade possível, as diferenças étnicas são, para nós, contexto. É isto que quem me lê deve perceber. Não há qualquer motivação económica em discriminar pessoas. Pelo contrário, qualquer empresário luta por ter mais diversidade à entrada porque isso é economicamente vantajoso. A percentagem de outras etnias que não a ‘lusitanodescedente’ é reduzida no universo onde as empresas contratam, muito mais reduzida que na rua, mas isso é um problema do contexto gerado pela péssima educação que temos. Ninguém é definido pela cor da pele, mas tem o futuro determinado pelas armas que lhe são dadas na vida.

Claro que episódios racistas acontecem todos os dias com quem não é branco, não o estou a negar. O tal artigo do Público é um exemplo mais chocante porque é escrito por uma pessoa supostamente educada, mas poderíamos encontrar exemplos iguais, todos os dias, de pessoas menos educadas. Mas isso é, como dizem os anglo-saxónicos, ‘sticks and stones’, expressão curiosamente adotada de um texto de uma igreja fundada por negros. Desde que as pessoas tenham armas com que combater o racismo folclórico, elas aprendem a olhar a burrice dos outros como reflexo de uma educação pobre. Com armas, pessoas de qualquer cor de pele sabem que isso não define uma pessoa. E sabem que o facto de nascerem pretos em Portugal não os faz menos portugueses ou ‘afrodescendentes’, expressão usada por ‘burrodescendentes’ que se acham menos racistas por isso e que acham que as pessoas se definem pela cor da pele.

Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador