Os vencedores têm geralmente o cuidado de escrever a História. Pelo menos nos tempos que se seguem à vitória. Depois, com o passar de outros tempos e depois das desilusões dos vencedores que vão ficando pelo caminho, esboça-se uma visão alternativa, uma “revisão histórica”, uma outra verdade ou realidade.

Sempre assim foi: os homens, mesmo os tiranos, sempre souberam a importância da fama, boa ou má, e sempre cuidaram da própria história, para que ela inspirasse a História ou até para ela se pudesse vir a misturar indistintamente com a História.

Talvez por isso Marx nos tenha alertado para a importância da história de quem conta a História, a história do historiador – pesando-lhe os preconceitos, os interesses, as afinidades, as devoções e as dependências ideológicas, sociais e familiares, a relação com os acontecimentos, os protagonistas e as situações.

Um exemplo clássico da influência na História dos interesses do historiador é a famosa De Vita Caesarum, de Suetónio, que viveu na transição do primeiro para o segundo século da nossa Era. Pertencendo à classe dos equites, uma espécie de classe média romana, entre a aristocracia senatorial e a plebe, Suetónio foi protegido por membros da classe senatorial, e traduziu, nos seus escritos, algum do rancor dos seus protectores pelos imperadores. Uma das vítimas dessa damnatio memoriae foi Domiciano, que, por sua vez, vitimou muitos cristãos e não seria grande peça.  De qualquer modo, Suetónio retratou-o de forma exacerbada e interessada como sedento de protagonismo, impulsivo, imaturo e em guerra permanente com seu irmão mais velho, Tito, contra quem nunca parara de conspirar. Uma vez no poder, fora um Domiciano hipócrita, corrupto e sanguinário que perseguiria a classe senatorial com “uma crueldade selvagem”, esbanjando o erário público em grandes espectáculos de massas. O cristãos também foram grandes vítimas de Domiciano que, de qualquer modo, não seria grande peça

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A Vida dos Doze Césares, a principal fonte da percepção futura dos primeiros imperadores de Roma, viria assim a basear-se no testemunho interessado de Suétónio. E a maioria das histórias fixadas para a posteridade vinham de um anedotário hostil, fruto do “pensamento correcto” então dominante na sociedade romana.

Estas histórias da História e a facilidade com que hoje uma opinião pública cada vez com mais informação e menos formação as recebe obrigam à revisão crítica das fontes: documentos e pessoas, fake news e polígrafos, noticiadores e comentadores ditos “objectivos”.

Na Europa, à volta dos grandes movimentos da Modernidade, da Reforma à Revolução Francesa e às revoluções totalitárias do século XX, surgiram inúmeras lendas negras. Os ingleses, na sua rivalidade com a Espanha dos Áustrias, construíram e disseminaram uma imagem tenebrosa dos povos católicos do Sul, detentores de retrógrados “impérios pré-industriais” que, na versão interessada dos novos imperialistas, por pertencerem à Idade das Trevas, por lá deviam ficar enterrados. Napoleão foi persistentemente exaltado como um génio militar e da governação e atacado como um oportunista que semeou a guerra e a destruição na Europa durante um quarto de século.

Polémicas portuguesas

A História de Portugal é também fértil nestas polémicas, sobretudo a partir do Liberalismo e do século XIX: o julgamento da acção de Pombal, que ainda hoje decorre e que divide até campos ideológicos opostos; os escritos de Herculano sobre a Igreja e a Inquisição; a revisão histórica pessimista do constitucionalismo liberal, feita por Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo.

Não será, assim, de estranhar que o século XX e a História do século XX continuem pródigos em polémicas versões oficiais.  O Estado Novo, chegado pela via militar, tal como o Liberalismo e a República, incorporou o espírito do tempo – o nacionalismo autoritário e anticomunista. O nacionalismo revolucionário fascista já tinha, em Itália, pactuado com as forças conservadoras; e num país agrário da periferia europeia, com o peso da Igreja e das classes médias tradicionais, a balança pendeu claramente para o nacional-conservadorismo e não para o fascismo. Através da solução do problema financeiro – a dívida pública externa que tornava o país refém dos credores estrangeiros – Salazar venceria a competição pelo investimento militar na chefia civil. E seria também o teorizador político e institucional do novo regime, que era um híbrido, em termos de política institucional.

O Estado Novo fez a crónica do regime anterior, acentuando a fragmentação partidária da Primeira República, a hegemonia dos Democráticos apoiados nos “activistas” de rua, a desordem, os constantes pronunciamentos, a “balbúrdia sanguinolenta”. Tal garantiu-lhe trinta anos de relativa hegemonia nos espíritos e nas ruas. Em 1958, a candidatura de Humberto Delgado marcou a mudança, pelo menos entre as classes médias urbanas de Lisboa e Porto. O peso do tempo ideológico euroamericano e o fim da era dos Impérios fariam o resto.

De Abril a Novembro

O 25 de Abril foi uma revolução corporativa, na origem e no desenrolar das suas fases mais agudas, com incipientes clientes políticos lutando pelo favor dos pretorianos, também sempre condicionados e limitados pela conjuntura exterior, que era a Guerra Fria.

Quem conheceu e viveu a resistência ao PREC não pode deixar de ler a maioria dos relatos oficiais desse período, entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, como uma fábula interessada, composta para uso e consagração dos príncipes. E sobre o 25 de Novembro, a narrativa maniqueísta é ainda dominante: desloca protagonismos e chefias, minimiza o pessoal no terreno – as companhias de Comandos convocados – e exalta grandes chefes e cérebros estratégicos. E é sobretudo omissa quanto ao papel das forças sistémicas, internas e externas, no controlo do que poderia ter sido uma viragem na revolução portuguesa, caso tivesse sido politicamente explorada.

Assim, foi um Thermidor em que, em nome da pacificação e da moderação, se congelou o PREC e o seu contrário, iniciando-se a consolidação do regime sob uma ideologia de esquerda antifascista, com uma classe política de centro-esquerda – o Centrão PS-PSD – e uma marginalização das direitas, sempre carregando as culpas do anterior regime.

Quarenta e seis anos depois, é fazendo as contas ao estado deste país adiado que se deve olhar, lembrar e julgar o 25 de Novembro, o esforço e sacrifício dos seus combatentes e o modo como os derradeiros vencedores contaram e contam a História.