A lógica financeira que exige das organizações resultados sempre em crescimento está a deixar muitas destas com uma falta de sensibilidade notória para com os seus próprios recursos humanos e para com os seus clientes. Aliás, há diversas tendências nas nossas sociedades que inevitavelmente contribuem para esta realidade. Radicalização do individualismo, fragmentação, normalização do que é moralmente questionável, uma obsessão com a quantificação de tudo e um foco no curto prazo, são tendências que vemos ganhar preponderância à nossa volta, em diferentes esferas das nossas vidas.
As organizações, em particular, foram tomadas por burocratas (um nome que proponho, educadamente, mas outros se poderiam usar aqui, com toda a certeza), frequentemente licenciados em teorias de gestão extraordinariamente vazias e que agem em nome de inevitabilidades como o outsourcing, o downsizing e o cost-cutting. Como todas as imposições ideológicas que são promovidas como sendo no interesse de todos, mas que apenas servem os interesses de alguns, estas são expressões modernas da panóplia de ações ao dispor de gestores, administradores e dos endeusados CEOs. Quem não quer ser administrador? Eu quero! E que venham os prémios de gestão anuais. Aliás, trimestrais mesmo, se for possível, à medida de um crescimento que tem de acontecer cegamente, seja de que forma for. Os fins justificam os meios, dizem os burocratas. Claro que sim.
Fala-se muito em colocar os clientes no centro da missão das organizações. Contudo, frequentemente este é um discurso tão oco, como tantos outros que se repetem ciclicamente. É preciso ter estômago. Na realidade, muitos destes burocratas acreditam mesmo que ter uma app ou um site todo bonito, a última versão do CRM que está na moda, ou uma linha de apoio ao cliente (que na realidade só demonstra, frequentemente, um absoluto desprezo pelos que a usam) é mais do que suficiente para criar uma boa experiência aos clientes. Nada podia haver de mais errado: uma boa experiência dos clientes envolverá sempre seres humanos verdadeiramente interessados nos outros e a trabalhar para estes. Genuinidade, empatia, compaixão e até carinho não se carregam numa app. São necessários recursos, pensar a longo prazo, e é preciso respeito pelos colaboradores internos e clientes.
Deixo aqui o exemplo concreto das mudanças no sector bancário, nos últimos anos. Com o fecho de centenas de balcões e a dispensa de milhares de trabalhadores, temos um crescente empurrar dos clientes para os canais digitais como estratégia de melhoria de atendimento, segundo dizem… Alguém está a ter uma melhor experiência como cliente de um banco? Eu não. Devo reconhecer que não tenho competência nem conhecimento para avaliar a necessidade de fecho de balcões, e não me custa a acreditar que ajustamentos nas redes dos bancos seriam provavelmente necessários. Mas, como mostra um estudo recente de Cláudia Valente, no âmbito de um Mestrado na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, o assédio moral é parte integrante da cultura organizacional na banca portuguesa e é cada vez mais usado como tática política, de concretização de estratégias competitivas, com o objetivo de promover a eficiência e a redução de custos operacionais… onde é que eu já ouvi isto? Certo… eficiência… redução de custos… os burocratas assumiram mesmo o poder. E não admitem que ninguém os questione. Fazem planos quinquenais e dizem-nos que não há alternativas… que o que fazem é para o bem de todos… A sério?
Em boa verdade, um burocrata acabaria com o atendimento ao cliente simplesmente por uma questão de princípio. O atendimento ao cliente é uma ineficiência absoluta, para um burocrata. Aliás, um burocrata acabaria também com as flores: são apenas ervas ineficientes, como diz o Rory Sutherland no seu livro ‘Alquimia’. A consideração pelos outros, a sensibilidade para com a humanidade destes, e as relações sociais, em suma, não são uma ineficiência das organizações… são antes a fundação de ambientes organizacionais saudáveis e da sustentabilidade dos negócios. Claro que um burocrata não percebe isto. Por isso é que é um burocrata. Respeitar verdadeiramente os clientes implica dar-lhes atenção, estar interessado em os ouvir e fazer o nosso melhor para satisfazer as suas necessidades e desejos. Aliás, estar com um cliente é ser ineficiente por definição (na ótica dos burocratas): é dar-lhe tempo, apoio, conselhos, sorrisos e até wi-fi grátis, sem ter nada em troca.
Um burocrata acredita que coisas como a atenção, a beleza, a indulgência, a confiança, a felicidade dos clientes… entre muitos outros exemplos possíveis relacionados com as idiossincrasias do ser humano… são insignificantes… e são ineficiências até. E os burocratas condicionam-nos a também acreditar nisto. E todos nós assim nos tornamos um bocadinho mais insensíveis aos outros… a cada dia que passa, fruto da quantificação de tudo e da burocratização de tudo. Juntemos a isto a mentalidade do curto prazo e a absoluta subjugação da avaliação do sucesso das organizações em função de resultados estritamente numéricos e redutores… e temos organizações cada vez mais frias e distantes da realidade da vida dos seus trabalhadores e dos consumidores no mercado. Esta falta de humanidade preocupa-me muito mais que as consequências do crescimento da Inteligência Artificial e os perigos que advém desta. E não devo ser o único.