Estou a escrever este texto uma hora antes de iniciar o sistema de videovigilância no Porto, quinta-feira, 22 de Junho de 2023. Segundo a imprensa, serão setenta e nove câmaras entre o Marquês e a Ribeira numa primeira fase, com o custo total de quatro milhões de euros, fora os contratos de manutenção. Na fase seguinte, chegará aos cento e dezassete olhos, também nas zonas de Lordelo, Foz, Dragão, Asprela, Serralves e Campanhã. No mundo distópico de “1984”, foi criada a referência ao “big brother” como a forma dos governos monitorarem e controlarem os seus cidadãos. Nas paredes da cidade fictícia deste livro de Orwell, há a frase constante: “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força.” Todos estão sob vigilância das autoridades, principalmente por câmaras de videovigilância, com excepção das elites. Da mente de um escritor há quase oitenta anos, este mundo está prestes a tornar-se ainda mais real. O mais irónico e triste, é se iniciar na cidade portuguesa que sempre foi sinónimo de liberdade, insubmissão, ousadia e desassombro. As câmaras de videovigilância vão agora ser ligadas, mas o que vão mostrar será apenas escuridão — a idade das trevas do Porto.

Antes de começar o mandato do movimento de Rui Moreia à frente da Câmara Municipal da minha cidade, o Porto era das suas gentes, era uma cidade de pessoas, portuenses orgulhosos do seu ser e do seu saber, das suas tradições e do seu sotaque maravilhoso. Era um lugar seguro, onde a droga não era vendida e consumida à frente de todos, era um porto de abrigo para os toxicodependentes, que recebiam tratamento e tinham deixado de ser arrumadores. Era uma terra pujante que não dependia exclusivamente do turismo e se preparava para ser um importante centro empresarial e com uma indústria ligada às novas tecnologias. Era a capital dos valores em Portugal, onde ainda subsistia a solidariedade, a dignidade, a soberania, o empreendedorismo baseado em mais-valias que contribuíam para o desenvolvimento económico e social. Era uma cidade onde ser “tripeiro” era ser motivo de orgulho e não de chacota.

Quando há mais de dez anos, o movimento Rui Moreira ganhou as eleições a Luís Filipe Menezes para a Câmara Municipal, começou uma era das trevas para a cidade e que culmina hoje com a instalação de câmaras de videovigilância nas ruas. O caos e a falta de segurança são tais que aparentemente as pessoas aceitam trocar a sua privacidade e direitos fundamentais básicos, pela possibilidade de se sentirem menos desprotegidas. Já não bastava a expulsão dos cidadãos das suas casas para dar lugar aos especuladores. Não era suficiente a fome e o esquecimento social, que se vê nas filas infinitas para a sopa dos pobres. Não chegava o acumular de trapalhadas e problemas no trânsito, no ambiente, ou na cultura. Com o passar dos anos, o medo, a instabilidade, a desconfiança e o desamparo tornaram a vida dos portuenses insuportável.

O movimento Rui Moreira é a antítese da social-democracia e dos valores de Sá Carneiro. Mas também não tem nada a ver com o PS dos seus fundadores ou a democracia-cristã que um dia existiu na cidade. O movimento Rui Moreira junta o pior do neoliberalismo com a incompetência crónica do socialismo que tem imperado desde o engenheiro José Sócrates até ao doutor António Costa. O movimento Rui Moreira, que se comporta como um partido e que tem a lógica sucessória de uma monarquia absoluta, parece querer continuar a ruína da cidade. O movimento Rui Moreira não tem intelectualidade para aprofundar aquilo em que acredita, então não tem um propósito profundo, a não ser a sobrevivência do próprio poder. Resta saber se os portuenses que restam vão continuar iludidos com os comentários da bola, a autocracia paternalista e a ansiar por umas migalhas que caem dos pratos dourados dos que têm lucrado com a noite escura que tem assombrado a cidade. O Porto, que sempre lutou pela liberdade, insubmissão, ousadia e desassombro, por ideais mais fortes do que aqueles que permanecem verdadeiramente, morre hoje mais um pouco. O maior perigo é as pessoas deixarem de pensar e somente obedecerem ou seguirem. Haverá esperança enquanto houver quem saiba distinguir o certo do errado.

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